Houve um momento — breve, luminoso e irrepetível — em que o Ocidente parecia recordar o que o havia tornado grande: coragem moral, responsabilidade individual, disciplina fiscal e a dignidade de um Estado que sabe quando recuar. Esse momento tem nome e sobrenome: os anos 1980.
E tinha três protagonistas centrais: Ronald Reagan em Washington, João Paulo II em Roma e Margaret Thatcher em Londres. Uma tríade moral. Uma muralha civilizacional. Uma arquitetura intelectual e espiritual capaz de conter o avanço do coletivismo e reerguer a confiança na liberdade.
No vértice mais afiado desse triângulo estava ela — Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, que não apenas governou, mas refundou o Reino Unido sobre bases liberais que hoje soam heréticas. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o Brasil continuava — como sempre — sendo a prova viva de que a ausência de convicções custa caro.
A heresia estrutural: o indivíduo acima do Estado
Thatcher não governou apenas um país — ela governou uma ideia. E essa ideia era simples, brutal e elegantemente libertadora: o indivíduo importa mais que o Estado.
Na frase que escandalizou progressistas, sindicalistas, estatistas e boa parte dos parasitas profissionais de seu tempo, ela decretou:
“There is no such thing as society.”
Não era desprezo pelos vulneráveis — era a mais honesta denúncia já feita ao coletivismo preguiçoso que terceiriza responsabilidades à ficção do “nós”. Era, sobretudo, a reafirmação de que liberdade exige autonomia. E autonomia exige coragem moral.
Foi o maior manifesto liberal desde Adam Smith — e, como todos os grandes manifestos liberais, foi imediatamente deturpado pelos eternos advogados do Estado máximo.
O Reino Unido falido — o diagnóstico que o Brasil evita há 40 anos
Quando Thatcher assume em 1979, o Reino Unido é um paciente terminal.
Inflação fora de controle, greves intermináveis, estatais sugando recursos, produtividade em queda, chantagem sindical, crescimento anêmico e uma cultura política baseada na ideia de que o Estado resolve tudo. Era a “argentinização” britânica em marcha.
Poderia ser o diagnóstico do Brasil em praticamente qualquer período recente. A diferença é que, onde nós escolhemos empurrar com a barriga, Thatcher escolheu amputar para salvar o corpo inteiro.
A guerra contra o rent-seeking
Muito antes de a teoria da Public Choice virar modinha acadêmica, Thatcher já aplicava sua essência com bisturi político.
O princípio é simples: Estado grande é presa fácil. Onde há muito Estado, há muita captura. Onde há captura, há parasitismo institucional.
Ela enfrentou sindicatos que se comportavam como máfias, estatais que funcionavam como poços de privilégios, corporações treinadas para competir em Brasília, não no mercado, e burocracias instaladas como aristocracias permanentes.
E, para horror de muitos, venceu. Não com discursos suaves, mas com enfrentamento direto, reformas duras e uma convicção inabalável de que o Estado não existe para proteger interesses organizados, mas para garantir um ambiente de liberdade para indivíduos produtivos.
As privatizações — o número que importa hoje
Durante seus onze anos no poder, Thatcher conduziu a maior transferência de ativos públicos para mãos privadas da história ocidental.
À época, o valor arrecadado com as privatizações ultrapassou £29 bilhões. Mas esse número, lido cru, engana: ele pertence a outra época, a outra escala de preços, a outro mundo.
Corrigindo esse montante pela inflação britânica desde meados dos anos 1980, chegamos a algo em torno de £112 bilhões em libras de hoje. Trazidos para dólares, usando a taxa de câmbio atual aproximada, isso equivale a cerca de US$150 bilhões.
Ou seja, Thatcher não mexeu em trocados: ela redesenhou o balanço de poder na economia britânica. É como se um país do porte do Brasil pegasse algo próximo de 15% do seu PIB e movesse, de uma vez, das mãos do Estado para as mãos da sociedade e do mercado.
Não é exagero dizer que Thatcher recriou o capitalismo britânico contemporâneo.
Da estagnação à modernidade
As reformas de Thatcher — desregulação financeira, reformas trabalhistas, disciplina fiscal, privatizações e combate aberto a privilégios — tiraram o Reino Unido do leito de hospital e recolocaram o país na pista de competição global.
Londres, que parecia envelhecida, voltou a se transformar no maior centro financeiro da Europa e em um dos maiores do mundo. Empresas voltaram a investir, a produtividade reagiu e a lógica de mérito começou a transportar gente real da periferia do sistema para o centro do jogo econômico.
Tudo isso, claro, cobrou um preço. Houve desemprego, houve dor, houve regiões que sofreram com o fim de indústrias ineficientes. Thatcher não prometeu milagre indolor; prometeu liberdade com responsabilidade. E cumpriu.
A tríade que derrotou a URSS
No tabuleiro geopolítico, a parceria com Ronald Reagan e João Paulo II formou uma tríade ideológica devastadora contra o socialismo real.
Reagan apertou o gatilho econômico. João Paulo II ofereceu o cimento espiritual. Thatcher entregou o núcleo racional da coisa: a clareza de que o socialismo não era apenas ineficiente — era moralmente falido.
Sua frase mais repetida é quase um teorema moral e econômico ao mesmo tempo: “The problem with socialism is that you eventually run out of other people’s money.”
A União Soviética ruiu exatamente por isso: vivia de dinheiro alheio — interno e externo —, de repressão e de ficções estatísticas. Quando a realidade finalmente se impôs, não havia mais nada para redistribuir, nem riqueza, nem esperança.
O Brasil como contraexemplo perfeito
Se Thatcher representa o triunfo da responsabilidade individual, o Brasil é o contraexemplo perfeito.
Hoje, 59 milhões de brasileiros — algo como 27% da população — recebem transferências diretas de renda. Se somarmos as diferentes modalidades de benefícios, auxílios e mecanismos de proteção, chegamos a um país em que praticamente metade da população, de uma forma ou de outra, depende de um cheque do Estado.
E, como num passe de mágica estatística, o desemprego atinge mínimos históricos justamente quando a economia cresce pouco e a produtividade mal se mexe. Não é milagre; é truque contábil: se milhões desistem de procurar trabalho formal porque a alternativa é a dependência estatal, a taxa oficial de desemprego cai, mas a realidade social não melhora.
Da ditadura ao lulismo, passando pelo cruzamento bizarro entre social-democracia tímida e patrimonialismo escancarado, o Brasil optou por um modelo em que governar significa distribuir, não libertar. Em que reformar significa criar mais programas, não cortar privilégios. Em que qualquer tentativa séria de redução do Estado é tratada como crime de lesa-pátria.
Aqui não se combate rent-seeking; ele é política pública. Corporações estatais, burocracias, grupos organizados de pressão, castas do funcionalismo e empresários dependentes do BNDES formam uma espécie de condomínio nacional instalado no Orçamento.
O liberalismo que precisamos — e quase ninguém tem coragem de defender
O mundo contemporâneo oscila entre duas tentações igualmente tóxicas: de um lado, o welfare state hipertrofiado, que transforma cidadãos em dependentes permanentes; de outro, a direita identitária e protecionista, que promete ordem mas entrega Estado grande com bandeira trocada.
A única alternativa minimamente séria — moralmente defensável e economicamente sustentável — é o liberalismo democrático centrado no indivíduo.
Não o liberalismo envergonhado, que pede desculpas por existir. Não o liberalismo de boutique, que adora causas simpáticas, mas foge do tema espinhoso da responsabilidade. Muito menos o liberalismo tecnocrático, que se esconde atrás de planilhas.
Falo do liberalismo que devolve às pessoas propriedade, autonomia, mérito, risco e recompensa. O liberalismo que trata adultos como adultos. O liberalismo que sabe que igualdade real é a igualdade perante a lei, não a igualdade de resultados produzida à força.
Foi esse liberalismo que Margaret Thatcher encarnou com todas as letras.
O epitáfio do Ocidente — e o chamado ao debate
O Reino Unido pós-Thatcher traiu grande parte do seu próprio legado: voltou a flertar com o protecionismo, inflou novamente o Estado de bem-estar, mergulhou no Brexit sem bússola e deixou a disciplina liberal escorrer pelos dedos.
O Brasil, por sua vez, nunca teve um legado liberal de verdade para trair. Nunca tivemos uma revolução institucional comparável. Nunca fomos capazes de encarar de frente a pergunta que Thatcher respondeu com clareza brutal: quem é o protagonista da história, o Estado ou o indivíduo?
É por isso que este texto não é um exercício de nostalgia, nem uma fantasia conservadora. É uma defesa explícita da ordem liberal como condição de sobrevivência de qualquer democracia que ainda se leve a sério.
Thatcher não foi perfeita. Fez inimigos, gerou dor, criou vencedores e perdedores. Mas preferiu lidar com as consequências da liberdade a administrar a miséria da servidão estável.
Porque, no fim, a liberdade não é só um sistema econômico: é um juízo moral sobre o lugar do indivíduo no mundo.
Enquanto continuarmos presos a Estados hipertrofiados, líderes paternalistas e populações seduzidas pelo conforto fácil da dependência, estaremos não apenas traindo Thatcher — estaremos traindo a nós mesmos.
Este é o debate que precisa incomodar. E é exatamente por isso que precisa ser feito.














