O avanço das big techs tem levado governos de todo o mundo a rever suas políticas de regulação e concorrência. No Brasil, o Ministério da Fazenda propôs um projeto de lei que pretende enquadrar empresas de grande porte digital como “agentes econômicos de relevância sistêmica”. A proposta, inspirada no modelo europeu do Digital Markets Act (DMA), foi analisada por Bernardo Quezado, do escritório Almeida Prado e Hoffmann Advogados Associados, que destacou à BM&C News o impacto da medida sobre o mercado e os consumidores.
De acordo com Quezado, a nova legislação representa uma tentativa de modernizar o arcabouço jurídico brasileiro diante das particularidades do mercado digital. Ele explica que as plataformas digitais exercem papel central na economia e, em muitos casos, funcionam como verdadeiros “gatekeepers”, ou guardiões de acesso a dados e consumidores. “A proposta é trazer maior transparência e coibir práticas abusivas que prejudiquem a concorrência e a inovação”, afirmou o advogado.
Quais obrigações as big techs terão com a nova regulação?
O projeto de lei estabelece que empresas com faturamento global superior a R$ 50 bilhões, ou com receita anual no Brasil acima de R$ 5 bilhões, poderão ser classificadas como agentes sistêmicos. Uma vez designadas, essas companhias estarão sujeitas a um conjunto de obrigações especiais a serem aplicadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Entre elas estão a necessidade de divulgar de forma clara seus critérios de ranqueamento, políticas de precificação e mudanças nos termos de uso.
Além disso, as big techs deverão garantir a portabilidade de dados e a interoperabilidade entre sistemas, permitindo que consumidores e empresas possam migrar informações de uma plataforma para outra sem restrições artificiais. Essa medida, segundo Quezado, tende a reduzir barreiras de entrada e estimular a competição entre players menores. “A liberdade de escolha do consumidor e a igualdade de condições de competição são os pilares dessa proposta”, destacou.
- Submissão de fusões e aquisições ao CADE, mesmo fora dos critérios tradicionais;
- Proibição de práticas de auto favorecimento e bloqueio de serviços concorrentes;
- Obrigação de oferecer acesso a dados e métricas de desempenho a parceiros comerciais;
- Disponibilização de canais eficazes de reclamação e atendimento;
- Garantia de condições isonômicas e não discriminatórias.
Como o projeto pode impactar as empresas brasileiras?
Embora o foco da proposta recaia sobre as grandes multinacionais, Quezado observa que companhias nacionais de grande porte também podem ser enquadradas. “Empresas como Mercado Livre e iFood têm características que podem se encaixar nos critérios do projeto. Isso significa que, caso a lei seja aprovada, o CADE poderá avaliar caso a caso e aplicar as obrigações cabíveis”, afirmou. Segundo ele, essa possibilidade amplia o alcance da regulação e sinaliza uma nova era de fiscalização mais ativa no ambiente digital.
Por outro lado, o especialista alerta que a regulação pode implicar custos adicionais às empresas, especialmente na adaptação a novas exigências de compliance e transparência. “É fundamental que o texto seja calibrado com cuidado. Se houver excesso regulatório, o resultado pode ser o encarecimento dos serviços ou até uma desaceleração da inovação no setor”, ponderou.
Qual será o papel do CADE e dos consumidores nesse novo cenário?
O projeto cria a Superintendência de Mercados Digitais dentro do CADE, que ficará responsável por fiscalizar e acompanhar as atividades das empresas de relevância sistêmica. Essa nova estrutura permitirá uma atuação mais preventiva, evitando que as condutas abusivas se consolidem antes que o mercado seja prejudicado. “É um modelo de regulação ex ante, ou seja, que antecipa a solução dos problemas, e não apenas reage a eles”, explicou Quezado.
Para o consumidor, a mudança promete trazer ganhos significativos. A transparência sobre os critérios de funcionamento das plataformas permitirá compreender como produtos e serviços são ranqueados ou exibidos. “Com mais clareza e liberdade de escolha, os usuários poderão migrar de uma plataforma para outra com menos fricção e mais segurança”, destacou o advogado. Nesse sentido, a expectativa é que o mercado se torne mais competitivo, gerando preços mais justos e serviços de maior qualidade.
Riscos e benefícios: equilíbrio entre controle e inovação
Enquanto o projeto representa um avanço no fortalecimento da política antitruste, especialistas alertam para o desafio de equilibrar regulação e inovação. Segundo Quezado, “o grande risco é engessar o setor tecnológico. As big techs são fundamentais para o desenvolvimento da economia digital, mas precisam operar dentro de limites que evitem o abuso de poder de mercado”. Ele reforça que o texto deve priorizar mecanismos que incentivem a concorrência sem comprometer a evolução tecnológica.
Nesse sentido, o Brasil segue uma tendência global. Países como Estados Unidos, Reino Unido e membros da União Europeia já avançaram em legislações que buscam conter o domínio das grandes plataformas digitais. O debate brasileiro, portanto, insere-se em um movimento mais amplo de adaptação das leis às dinâmicas da economia digital. “Trata-se de atualizar a política de defesa da concorrência para o século XXI”, concluiu Quezado.
Um marco para as big techs
O projeto de lei das big techs ainda está em tramitação, mas já desperta interesse de juristas, economistas e empresas de tecnologia. Ao propor um modelo preventivo de fiscalização e impor obrigações específicas a agentes dominantes, o texto busca reequilibrar o poder de mercado e proteger tanto consumidores quanto concorrentes. Se implementado com prudência, poderá representar um marco histórico na modernização da regulação econômica brasileira, preparando o país para os desafios e oportunidades da nova era digital.