De tempos em tempos nos deparamos com grandes escândalos financeiros como o caso de Bernie Madoff, que conseguiu enganar milhares de investidores norte-americanos com um esquema piramidal de quase 65 bilhões de dólares, ou o da empresa alemã de meios de pagamentos Wirecard, que chegou a valer 28 bilhões de euros fazendo inclusive parte do Dax, o principal índice de ações na Alemanha. A fintech enganou seus acionistas por quase duas décadas, recebendo aportes inclusive de investidores famosos como o Softbank. Quando o mercado se deu conta que nem o caixa que a empresa reportava existia suas ações passaram de 104 para 2 euros, uma queda de aproximadamente 98% em um único dia!
A lista é longa, e apesar de toda a regulação do sistema financeiro e do mercado de capitais, grandes fraudes aparecem de tempos em tempos, em diversos países, passando indetectadas tanto por empresas de auditoria como pelo escrutínio de analistas e investidores.
Então, a pergunta que nos vem à mente em casos como estes é: como ninguém viu isso antes?
Um fator importantíssimo que sempre avalio ao fazer minhas análises é o alinhamento de interesses existente dentro de cada companhia. Isso não é algo que esteja escrito de forma clara como o estatuto da empresa, mas é algo que podemos inferir estudando um pouco melhor a história dos principais acionistas da empresa, entendendo bem sua cultura, seus sonhos e ambições.
Conversas com ex-funcionários, fornecedores, clientes variados e principalmente com funcionários fora da linha de frente costumam ser muito úteis e retratam na prática os reais valores de empresa, sem a perfumaria dos relatórios anuais. Outra parte importante desta equação é entender quem são os executivos da empresa e como este time é remunerado.
Agora imagine uma empresa que no cenário A possui a remuneração de seus executivos atrelada à sua geração de caixa de longo prazo, e no cenário B possui sua remuneração vinculada ao preço das ações da companhia. Em qual destes cenários você acredita que a gestão estaria incentivada a adotar uma contabilidade mais agressiva?
Modelos de remuneração excessivamente assimétricos, no qual o executivo fica rico se bater a meta, mas passa fome se não entregá-la, costumam ser terrenos férteis para graves desalinhamentos de interesse entre a gestão e os demais stakeholders.
Imagino que este seja o caso da Americanas, que agora no início deste ano nos surpreendeu com a informação de que algo como R$20 bilhões de passivos com fornecedores foram simplesmente omitidos de seus livros.
Não imagino que isso tenha começado como uma política deliberada de enganar bancos e acionistas. No entanto, quando uma empresa possui como um de seus valores “ser obcecado por resultado” a ética muitas vezes tende a ser colocada em segundo plano. Dentro de um modelo darwinista de gestão as metas são prioridades, e os resultados costumam ser entregues, custe o que custar.
Em geral, essas heterodoxias costumam começar pequenas, muitas vezes como um pequeno ajuste para fechar os números de um ano mais difícil, mas ao passarem despercebidas pelo mercado, acabam repetindo-se inadvertidamente de forma que com o passar dos anos passam a ser tratadas com certa naturalidade dentro daquele meio.
O problema começa quando a sujeira fica maior do que o tapete que estava escondendo-a. No caso Maddof, não fosse a crise de 2008, talvez não saberíamos até hoje da grande fraude por trás de um dos homens mais prestigiados de Wall Street, que chegou a ser inclusive chairman da NASDAQ. Com o agravamento da crise muitos clientes queriam resgatar suas aplicações, e sem novos aportes entrando ele não teve recursos suficientes para pagar todos os seus investidores, fazendo ruir o castelo de cartas.
Imagino que no caso Americanas tenhamos experienciado algo similar. Será que sem a alta abrupta das taxas de juros no Brasil encarecendo a rolagem destas operações saberíamos deste escândalo neste momento? Será que sem a troca da gestão de Miguel Gutierrez para Sergio Rial o final da história teria sido diferente? São muitas perguntas sem respostas até o presente momento, e apenas uma investigação mais aprofundada poderá trazer a verdade à tona.
Então volto à minha pergunta inicial, como é que ninguém viu isso antes? Acredito que muitos de fato não viram, mas certamente alguns desconfiaram. No entanto, as pessoas tendem a ser mais tolerantes quando estão ganhando dinheiro.
Por que algum acionista questionaria a Wirecard quando suas ações subiam como um meteoro? Já havia rumores de que a companhia fizesse negócios escusos na internet processando pagamentos ligados à pornografia e de jogos de azar online, no entanto, era conveniente fazer vista grossa, as ações da empresa subiram 3115% de 2009 a 2019, sendo que no mesmo período as empresas do DAX 30 subiram apenas 119%.
A mesma lógica se aplica ao caso Maddof, por que é que seus investidores questionariam a empresa se eles recebiam retornos estáveis de aproximadamente 1% ao mês, praticamente sem volatilidade, quando os demais hedge funds da indústria sofriam com enormes flutuações? Talvez seja aquela lógica de não mexer no time que está ganhando. Mas pensando em seus concorrentes que estavam perdendo market share, se Maddof possuía uma estratégia tão boa e tão rentável, por que é que ninguém teve a ideia de ao menos copiá-lo durante tantos anos?
Agora volto ao caso da Americanas, será mesmo que grandes bancos, com sofisticadas ferramentas de análise de crédito, ao olhar o endividamento da companhia e o volume de dinheiro que cada um deles emprestou individualmente à empresa nunca desconfiaram que este valor não estava contabilizado em nenhum lugar? Ou será que confiaram que se caso algo desse errado os antigos controladores, por coincidência alguns dos homens mais ricos do mundo, socorreriam a empresa evitando maiores danos?
Enfim, são muitas suposições e não sei se em algum momento saberemos a história completa, mas a lição que fica é que incentivos errados costumam levar à consequência desastrosas no longo prazo!