
Este é o segundo artigo da nossa série sobre a história do Bitcoin. O primeiro pode ser conferido aqui. Nesse, damos sequência à linha do tempo e aos eventos que aconteceram após o surgimento da primeira exchange.
Há alguns casos famosos que trouxeram má publicidade à tecnologia em seus primeiros anos de existência, estabelecendo um estigma que tem se desfeito aos poucos, à medida que surgem os casos de bom uso social da tecnologia. Mas esse último será abordado na parte mais recente dessa linha do tempo.
O primeiro caso que mencionaremos é o Mt. Gox, o maior ataque hacker da história do Bitcoin, que levou à falência uma das maiores corretoras da época, deixando milhares de usuários sem acesso aos seus fundos. Depois, abordaremos o caso do Silk Road, o maior marketplace de substâncias ilícitas, e de outros produtos de mesma característica, que já existiu.
O maior ataque hacker da história do Bitcoin
Em julho de 2010, Jed McCaleb anunciou o lançamento da Mt. Gox, uma nova corretora de bitcoins. Na linha do tempo, o lançamento aconteceu pouco após a primeira atribuição de preço ao bitcoin, a partir de transações entre entusiastas. Jed era relativamente conhecido no meio empreendedor por ter criado o eDonkey, um site conhecido pelo livre compartilhamento de documentos e arquivos de forma online. Além disso, o Mt. Gox havia sido criado originalmente como uma plataforma de negociação de cartas do jogo Magic The Gathering.
Ao desenvolver interesse pessoal pelo Bitcoin e não observar muita tração em seu projeto, Jed aproveitou da infraestrutura desenvolvida para mudar o rumo do negócio e criar a exchange que viria a ser a maior do mundo até então. Entretanto, Jed vendera seu projeto a um programador francês chamado Mark Karpelès poucos meses após o ganho de tração da corretora, em março de 2011.
O seu crescimento acelerado não chamou apenas atenção de Mark, mas também de hackers, atraídos pela enorme circulação de bitcoins na plataforma, que não tinha uma infraestrutura de segurança ou de compliance que seriam essenciais nos dias de hoje. A combinação desses fatores foi a tempestade perfeita para que, em 19 de junho de 2011, quando bitcoins eram negociados a cerca de U$17,50, a corretora Mt. Gox fosse hackeada. Mais de 4 mil bitcoins de cerca de 600 carteiras de usuários diferentes foram perdidos após o ataque.
O ataque teve início quando hackers conseguiram acesso às credenciais de um auditor que trabalhava para a corretora. Com as credenciais em mãos, o passo seguinte foi de comprometer o acesso a uma conta de administrador da Mt. Gox, que teria as permissões necessárias, erroneamente, de criar inúmeras ordens falsas de venda. O preço do bitcoin foi levado de U$17,50 a U$0,01 em cerca de 30 minutos.
Quando o golpe foi identificado, a exchange teve suas operações pausadas por 7 dias, com o intuito de corrigir as falhas que permitiram a situação e de tentar reverter as transações fraudulentas. No entanto, uma cópia da base de dados da corretora fora vazada e os dados dos clientes se tornaram acessíveis aos hackers, concluindo então o golpe com o envio dos fundos para fora da corretora.
Apesar da tentativa de corrigir falhas, o sistema da exchange, originalmente criado para um fim menos complexo, sofreu uma série de falhas e de ataques ao longo de alguns anos. Em um desses, mais de 2,6 mil bitcoins foram perdidos após um erro de código enviá-los para um endereço inválido. Mesmo assim, a Mt. Gox continuou como líder em volume transacionado por muito tempo.
Em maio de 2013, a exchange abriu uma conta bancária na Wells Fargo, importante instituição financeira americana. Com a sua estabilização em solo americano e com a consequente exposição de seus dados ao governo, a empresa passou a ser investigada pelo Departamento de Segurança Americano por suspeita de violação de leis de corretagem e de transferência de dinheiro. Quase 3 milhões de dólares de uma conta de uma subsidiária, que era usada para processar pagamentos entre clientes americanos, foram apreendidos no processo de investigação. Com isso, a incerteza sobre a legalidade de negociação por meio de bitcoins e sobre a idoneidade da corretora aumentaram.
A falha derradeira da exchange começou a ser conhecida e mensurada quando, em fevereiro de 2014, os saques foram bloqueados a todos os clientes da plataforma. A corretora alegou que uma falha de segurança num protocolo fora explorada por hackers. Já sem a capacidade de efetuar retiradas, os mais de 25 mil clientes da plataforma foram surpreendidos com a desativação de todas as funções do site.
A consideravelmente longa história da Mt. Gox, ao levar em conta as falhas de desenvolvimento que a plataforma apresentava, foi marcada pela perda de cerca de 850 mil bitcoins, com valor estimado em cerca de 500 milhões de dólares na época.
A história tem desenvolvimentos até hoje, já que nem todos os ativos de clientes estavam sob custódia da corretora. A parcela dos bitcoins perdidos é avaliada em quase 3,5 bilhões de dólares aos preços de hoje.
A suposta ‘moeda do crime’
Em fevereiro de 2011, o bitcoin havia atingido, pela primeira vez, o marco de U$1,00 por token. Contudo, a euforia pelo marco seria impactada, no mesmo mês, pela criação do controverso marketplace denominado Silk Road.
Por um lado, era a primeira vez em que o ativo digital seria usado em larga escala para transações entre pessoas de forma direta. Por outro, a percepção pública seria manchada por anos a fio, ao ser amplamente divulgada como a ‘moeda do crime’.
Silk Road era uma plataforma totalmente livre às intenções dos usuários que lá estivessem, permitindo que basicamente qualquer coisa fosse transacionada sem barreiras ao acesso sem identificação. Por conta da facilidade de uso e do pseudo-anonimato, o bitcoin fora escolhido como a moeda oficial da plataforma.
O seu criador, Ross Ulbricht, também se aproveitara do anonimato na época, ao ter adotado o pseudônimo ‘Dread Pirate Roberts’, constantemente abreviado para ‘DPR’. Ross era um estudante formado em Física pela Universidade do Texas e estava cursando seu mestrado em Ciência de Materiais e Engenharia pela Universidade Estadual da Pensilvânia.
Com forte inclinação libertária, Ross criou a plataforma com a intenção de formar um mercado livre de interferência estatal, em que indivíduos poderiam atuar como bem entendessem, desde que não colocassem terceiros em risco. Uma das poucas restrições era a de não negociar produtos roubados ou com o deliberado propósito de prejudicar pessoas inocentes. Dessa forma, dentre outros, eram proibidos: dinheiro falso, serviços de assassinato de aluguel e pornografia infantil. No entanto, drogas e outras substâncias ilícitas não se enquadravam nessas diretrizes e poderiam ser transacionadas livremente.
O não-enquadramento dessas substâncias entre as restrições chamara a atenção de traficantes de drogas e de usuários interessados em adquiri-las. O marketplace passara a ser amplamente conhecido pela negociação massiva (e simples) de drogas em pouco tempo de existência. A experiência de negociação de substâncias passara, então, a contar com funcionalidades como avaliação de produto e de reputação de vendedores e como interações com os participantes da plataforma.
Ross Ulbricht escreveu, numa carta na época de seu julgamento, que nunca teve a intenção de criar um marketplace para substâncias ilícitas, mas um mercado em que as pessoas tivessem liberdade para atuar.
“O Silk Road deveria ser sobre dar às pessoas a liberdade de fazer suas próprias escolhas, de buscar sua própria felicidade, da maneira que individualmente achassem melhor. O que se transformou foi, em parte, uma maneira conveniente para as pessoas satisfazerem seus vícios em drogas. Eu não defendo e nunca defendi o abuso de drogas.”
Em outubro de 2013, o site foi fechado pelo FBI e Ross Ulbricht foi capturado. O Silk Road tinha mais de 10.000 contas ativas e tinha um volume de transações estimado entre 15 e 45 milhões de dólares por ano (em valores da época) apenas nas categorias de mercadorias ilegais. Após o julgamento, Ross Ulbricht foi sentenciado a duas prisões perpétuas e mais 40 anos, sem a possibilidade de liberdade condicional.
Alexandre Ludolf é CIO da QR Asset. Engenheiro pela PUC-Rio e Mestre em Economia pela FGV-SP, com 18 anos de experiência como gestor de fundos de investimento e passagem por diversas instituições de renome como Santander, Safra e Mirae Asset. Alexandre possui vasta experiência na gestão de fundos de investimento e é um entusiasta de tecnologia, investidor de ativos digitais e startups.