O advogado e constitucionalista André Marsiglia afirmou, em entrevista ao BM&C Visões, que o Brasil vive um período prolongado de insegurança jurídica, marcado pela concentração de poder no Supremo Tribunal Federal (STF) e pela incapacidade das demais instituições de limitar seus excessos. Segundo ele, o país está há mais de seis anos “parado no tempo”, desde que o tribunal “assumiu para si todas as funções do país”.
A análise é consequência direta do cenário político recente, incluindo a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e as disputas institucionais em torno da atuação do STF. Para Marsiglia, a questão central não está apenas na decisão pontual sobre a detenção, mas no acúmulo de episódios que, na visão dele, “deslocaram o eixo de poder para fora das regras constitucionais”.
Um STF ‘fora da lei’, segundo o constitucionalista
Marsiglia afirma que o tribunal opera hoje “fora da lei” e que a crença de que o Supremo poderá, espontaneamente, retornar aos limites originais previstos na Constituição é irreal. “Você permite que exista um STF fora da lei, com apoio da mídia, das universidades e de elites econômicas, e acredita que depois será possível devolvê-lo ao lugar de onde nunca deveria ter saído. É uma ilusão.”
Segundo ele, a lógica é semelhante ao comportamento de um agente público que passa a agir sem freios institucionais: uma vez ultrapassado o limite, não há retorno automático. “O STF está viciado em um poder desmesurado”, disse.
Para o advogado, isso cria um efeito sistêmico que deve durar “décadas”, corroendo a previsibilidade jurídica e afetando setores como educação, formação de juristas, mercado e ambiente político.
Inquérito das Fake News: marco inicial dos excessos do STF
Ao ser perguntado pela apresentador Isabela Tacaki sobre quando começou o processo de expansão de poder, Marsiglia afirma que os excessos sempre existiram no país, mas que o cenário atual tem uma característica inédita: “os excessos começaram e terminaram no STF”.
Ele aponta 2019 como marco, com a abertura do Inquérito 4781, conhecido como inquérito das fake news, instaurado diretamente pelo tribunal. “Os excessos da Lava Jato eram na primeira instância, submetidos à revisão. Agora eles partem da cúpula, e não há instância acima para corrigi-los.”
Bolsonarismo, direita ‘soft’ e o cálculo político do sistema
A entrevista também abordou a prisão de Jair Bolsonaro e o impacto disso sobre o cenário eleitoral. Para Marsiglia, a detenção tem dimensão política e simbólica. “Virou um troféu. Personalizou-se totalmente a relação entre o ministro Alexandre de Moraes e o ex-presidente.”
Ele avalia que Bolsonaro dificilmente terá liberdade de comunicação enquanto cumprir pena, mesmo que seja transferido para prisão domiciliar. “Mais do que prender o Bolsonaro, o objetivo é limitar sua capacidade de influenciar as eleições.”
Marsiglia afirma que existe uma tentativa de “psebbização da direita”, isto é, substituí-la por um modelo mais alinhado ao centro tradicional, mas que esse plano ignora um fator decisivo: a base popular. “O povo não é mais o mesmo. Existe um eleitorado que não aceita uma alternativa ‘soft’.”
Congressos e elites: permissividade que abre espaço para abusos
Segundo Marsiglia, o STF só conseguiu se expandir porque encontrou um Congresso disposto a ceder.
Ele cita o caso do deputado Daniel Silveira como exemplo: “O deputado só foi preso porque o Congresso referendou a decisão. Há uma escalada do STF que dialoga com a permissividade do Legislativo.”
E defende que qualquer mudança futura, antes da própria revisão constitucional, requer um confronto político direto: “O Congresso precisa chegar e dizer: ‘Nós não aceitamos mais’. Sem isso, nada muda.”
Reconstrução: reforma do Judiciário e rediscussão da última palavra
Para Marsiglia, o desenho constitucional de 1988 já não responde à dinâmica atual do poder. “Precisamos reconstruir o país. A Constituição pensou no STF como freio ao Executivo autoritário, mas não imaginou que a concentração de poder viria do próprio tribunal.”
Ele defende uma reforma do Judiciário, revisão da estrutura dos tribunais superiores e mecanismos que permitam rediscutir decisões do STF quando elas “saem dos trilhos”.
Autoritarismo no futuro? O risco do ‘remédio virar veneno’
Questionado sobre o risco de um movimento contrário, um Executivo autoritário para enfrentar o Supremo, Marsiglia diz que isso só se evita com lei clara e respeitada. “A única forma de evitar autoritarismo é haver lei. A lei é o que segura o autoritarismo.”
Mas ele reconhece que, hoje, a aplicação da lei está fragmentada: “O texto vira ponto de partida para a criatividade do juiz. A cabeça do juiz passa a ser o que nos governa.”
O que resta às empresas e ao cidadão?
Marsiglia afirma que não se deve generalizar o problema ao Judiciário como um todo. “A maior parte das empresas não leva seus processos ao STF. A primeira e a segunda instância têm bons juízes e desembargadores.”
Já para a sociedade, ele vê um papel fundamental na reconstrução cultural. “Os empresários precisam se preocupar com a formação dos jovens e oferecer visão crítica além das universidades. Sem cultura, nenhuma mudança institucional se sustenta“, afirma.














