
No dia 20 de março de 2003, a coalizão liderada pelos EUA invadiu o Iraque iniciando uma guerra cujos combates duraram pouco tempo, pois a derrubada de Bagdá ocorreu em 1º de maio do mesmo ano. No entanto, é consenso que ela durou até 18 de dezembro de 2011, sendo aquele momento inicial de lutas apenas a primeira fase da guerra que, além de desmantelar o governo iraquiano, esgotou o país, criou um processo de transição incompleto e ineficaz para a instauração de um regime político democrático, e colocou os EUA em uma espiral de gastos na tentativa de dar corpo à concepção doutrinária emitida por George W. Bush, quando do lançamento da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) de seu governo, em 2002, usando a expressão “Guerra ao Terror”, que ficou mundialmente conhecida e gerou muita polêmica, surgindo inúmeros críticos a ela, uma vez que juntamente com essa expressão vieram outras bem curiosas, dentre elas: “Guerra Preventiva”, “Eixo do Mal” e “Rogue States” (“Estados-bandidos”, ou “Estados-párias”).
Bush lançou sua Doutrina em resposta ao “11 de Setembro de 2001”, com os ataques às torres gêmeas do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, além de outros atos menores, como o avião lançado contra a sede do Pentágono em Washington, D.C., e o avião que caiu num campo próximo de Shanksville, uma região do Condado de Somerset, no estado da Pensilvânia, tendo tombado em campo aberto porque passageiros enfrentaram os terroristas, impedindo a consecução de seus objetivos.
Quando se lê a DSN de Bush, logo no início vemos ele admitir que o século XXI poderia estar nascendo, já que afirma não existir qualquer Estado no mundo com capacidade enfrentar os norte-americanos, mas que, no entanto, surgiam outros atores que estavam operando globalmente e esses seriam os atuais inimigos dos EUA no século que surgia. Citou explicitamente o terrorismo, tanto que declarou guerra ao terror, daí a expressão criada, e passou a sugerir a possibilidade da existência de “Estados Terroristas”, os quais seriam responsáveis pelo estímulo e patrocínio a atentados pelo mundo. Para tanto, apontou haver um Eixo do Mal, tal qual declarou no Discurso sobre o Estado da União, de 29 de Janeiro de 2002.
Muito curiosamente, essa guerra começada em 2003 não alterou nada, mesmo que se acreditasse que poderia mudar o mundo ou ao menos organizá-lo, fazendo surgir definitivamente uma nova ordem. Temos de admitir que Bush trouxe muitas novidades, mas elas não alteraram a desordem global surgida com o fim da Guerra Fria. Pelo contrário, o mundo apenas manteve o passo no sentido da confusão que agora observamos!
Quando na DSN de 2002 declarou que havia outras formas de inimigos além dos estados, Bush estava admitindo que a ordem que surgiria teria de levar em conta novos tipos de elementos atuando nas relações internacionais, mesmo que ele não entendesse a razão disso! O fato concreto é que o último quarto do século XX viu surgir paulatinamente diferentes atores nas relações internacionais, de naturezas distintas das unidades políticas, sendo essas, de então, apenas um dos tipos existentes, trabalhando esses outros atores não mais a reboque dos objetivos dos governos dos estados em que estavam situados, mas seguindo seus próprios interesses e agindo autonomamente. Sendo assim, além dos Estados, emergiam então as Corporações Multinacionais, os Organismos Internacionais, que passaram a ter mais protagonismo, as Organizações Não-Governamentais Internacionais e um tipo de ator muito especial, por transitar na ilegalidade e criminalidade, o qual, por se apresentar travestido no corpo dos outros tipos existentes, é chamado Difuso, destacando-se nesta categoria, com especial relevância, o narcotráfico, o crime organizado nas suas variadas configurações e o terrorismo, razão pela qual, pelo fato de nenhum criminoso se apresentar como terrorista, ladrão, traficante ou corrupto é que eles sempre se mostram como empresas, ou como ONGs, ou tomam a administração de organismos internacionais, ou conseguem o controle de governos.
Por isso, fazia e faz sentido a declaração de Bush acerca da existência de Estados-bandidos, ou Estados-párias, admitindo-se que esses estejam tomados por grupos com os perfis dos criminosos, que levam seus países a trabalharem para a consecução dos intentos ilícitos. Da mesma forma, passou a fazer sentido a existência de narcoestados, aceitando-se também que os governos desses países estivessem se mantendo com personalidades voltadas para a realização dessa atividade ilícita e usassem suas sociedades como meios para tanto.
Em síntese, a novidade com aquele discurso, e depois com a guerra que surgia, era a admissão de que não havia mais apenas a relação entre países constituindo as relações internacionais, pois existiam relações entre vários tipos de atores, sendo os estados um dos tipos, apesar de ser o mais importante, já que são os únicos capazes de fazer a guerra e a paz, ou seja, capazes de realizar as atividades que mudam ou mantêm o relacionamento entre os atores com uma específica organização das trocas e relacionamentos em determinado momento da história.
POR QUE NADA MUDOU?
Nesse sentido, se ficou claro que o mundo estava mais complexo, já que vários tipos de atores estavam participando do jogo, e isso era a novidade do século que nascia, por que então nada mudou? A resposta é imediata: porque aquela não foi uma guerra para definir claramente a nova ordem no mundo, com os EUA como o único protagonista, ou para preparar um novo sistema internacional, mas foi feita para responder às angústias de um governo norte-americano que queria entender o que estava acontecendo e não sabia como dar corpo ao mundo que nascia, já que esta deveria ter sido a sua tarefa, admitindo-se como fato que havia restado apenas os EUA como a única potência capaz de, naquele momento, fazer a guerra em dois pontos distintos do globo e vencer as duas, graças ao poder que dispunha!
Os Estados Unidos sabiam ser a única superpotência e acreditavam que isso se manteria, bastando preservar seu domínio sobre os pontos nevrálgicos do mundo: Extremo Oriente, Sudeste Asiático e Oriente Médio, uma vez que a Europa se conservava sob sua influência, e América Latina e África não apresentavam problemas para a segurança e projeção de poder dos norte-americanos. Na realidade eram vistas como insignificantes. Não esqueçamos que Hugo Chávez ainda era apenas o recém-nascido “Bebê de Rosemary”. Para os que desejarem mais explicação sobre isso, seria interessante assistir o filme. Esta é até uma imagem interessante para mostrar o que o monstro fez com a mãe, no caso, a sociedade venezuelana, enquanto ainda estava no seu corpo, se alimentando dela para finalmente nascer como o déspota populista e demagogo que se tornou!
Aos EUA era importante ter controle do ventre da Ásia até o seu sudeste. Não à toa alguns dos países que compunham o eixo do mal, pois seriam Estados-párias e por isso deveriam ser derrotados, estão numa linha que circunda China e Rússia, curiosamente, as duas potências que, hoje, estão levando os Estados Unidos a fazerem o que for necessário para colocá-los em condição de não se levantarem contra os seus interesses, mesmo que sob a nomenclatura de interesses ocidentais. A título de curiosidade, compunham esse eixo: Iraque, Irã e Coreia do Norte, sendo incluídos Cuba, Líbia e Síria, além de admitir-se o Afeganistão que já estava sob invasão desde 2001.
Como dito, três desses países, por sinal, além de serem ditos estados terroristas, têm a característica de estarem situados exatamente em região por onde sempre se tentou construir gasodutos para evitar a dependência do fornecimento de gás da Rússia para a Europa. Síria, Iraque e Irã, coincidentemente, posicionam-se em região apropriada para permitir carrear o gás do Mar Cáspio para a Europa, os principais aliados a que Bush se refere direta e indiretamente em seu discurso, os quais são imediatamente objetos da proteção norte-americana. Por isso, não nos surpreende que tenha havido tanta disputa por russos e americanos para manter a influência ou controle sobre Teerã, já que tal condição permite controlar a produção e distribuição de gás.
Ora, também se explica a atenção dada pelos russos para o controle da Geórgia, Armênia e Azerbaijão, cuja capital Baku molha seus pés no mesmo Mar Cáspio, tão rico em gás. Parece ficar claro que os russos irão a guerra para preservar esses lugares neutros ou sob sua influência! Não podem permitir que a ponte de terra entre o Cáspio e o Mar Negro, passando por Azerbaijão, Armênia e Geórgia sejam conquistadas por quem quer que seja, ou que a passagem unindo Irã, Iraque e Síria sejam ocupadas por alguém, já que por essa estrada estava prevista a construção de gasoduto para chegar até a Europa com os hidrocarbonetos que os russos não conseguiriam mais controlar! Esse é um problema!
Não podemos esquecer ainda que um possível eixo “Moscou–Pequim–Países Árabes–Persas” é um fantasma a atormentar a mente dos EUA, por isso tanto dispêndio de energia, recursos, dinheiro e sangue!
A concretização desse eixo seria o mesmo que ver se conformando a união de massa humana, armamentos de alto poder destrutivo, economia capaz, produção em escala, tecnologia e o controle das estradas que colocariam a Europa sob as exigências desse grupo, bem como levariam os EUA a verem sua energia se esvair com a chegada de uma nova ordem que lhe rebaixaria à uma condição certamente insuportável. Não assusta, então, que sejam e serão capazes de ir à guerra e mantê-la para não permitir que isso aconteça e para preservarem sua condição, mesmo que ao honroso e patriótico custo da última gota de sangue do último nobre cidadão ucraniano!
O EIXO DO MAL
Voltemos à guerra de 2003, de imediato, começou com a afirmação de que o Iraque fazia parte de um eixo do mal, composto por estados terroristas, criminosos, por isso párias, e a prova dessa condição estava em que desenvolvia armas de destruição em massa, no caso armas químicas, sobre as quais agentes de inteligência tinham obtidos informações que nunca foram comprovadas. Mas Bush não estava preocupado com essa situação. Desejava colocar sobre o seu controle aquela área do Oriente Médio, bem como da Ásia, que permitiria apostar na contenção dos inimigos que viriam, mas errou na dose no Iraque, tanto quanto errou no quinhão dado aos afegãos.
Em 2003, ao terem conseguido a reunião de forças para mostrar que o mundo estava consigo, fizeram a invasão e colocaram um governo alternativo após a derrocada de Saddam Hussein. Deve-se ressaltar que chegaram a anunciar que 49 países estavam no grupo, depois 48, mesmo que entre eles estivessem potências como as Ilhas Marshall, Micronésia, Palau e Ilhas Salomão. Não esqueçamos que, diante da ONU e do mundo, mostrar algum número tem peso, mesmo que, observados individualmente, tais números sejam frágeis.
A GUERRA DE 3 TRILHÕES DE DÓLARES
A questão que atormenta é entender a razão pela qual erraram na medida. Não deveriam ter começado a guerra? Alguns analistas condenam que tenha sido realizada, mas creio que a questão não é essa! Usaram os norte-americanos de argumentos falsos para justificá-la? Pelo que se comenta hoje, sim! Mas, novamente, esse não é o tema! O Problema está em terem iniciado uma aventura que custou 3 trilhões de dólares, aproximadamente, para deixar tudo como sempre foi: um povo quebrado, sofrendo como antes, com governos acusados de corrupção, sob a possibilidade de se vincularem de forma sólida aos seus inimigos e sem terem entendido o que é a democracia, a definida por nós ocidentais, já que não conseguiram criar as instituições, mudar a educação, desenvolver traços culturais que permitem fazer o conceito de democracia ser apreendido pelos cidadãos e desenvolver a sociedade, criando uma economia apta a enriquecer o povo. Não esqueçamos que povo rico tende a entender os seus direitos, a reivindicá-los, a controlar os seus governantes e são menos suscetíveis aos encantos dos tiranos. Caso não seja possível torná-lo rico, ao menos que não seja, fique, ou permaneça pobre.
O GRANDE ERRO
O erro principal, já que iniciou a aventura, foi ter saído do território iraquiano sem ter criado concretamente uma sociedade capaz de entender a democracia, sem ter educado o povo para tanto e sem ter estabelecido instituições fortes ao ponto de receberem a legitimação dos cidadãos iraquianos. Deveriam ter trabalhado melhor com as vertentes moderadas dos muçulmanos para fazer as pontes entre as palavras do Profeta e as ideias do mundo liberal e criado estradas entre a grandeza da cultura árabe e os pilares da democracia, mesmo porque o conceito de respeito é entendido por todos os povos, mesmo que haja diferenças de definição, e sejam distintas as culturas. Os gastos de 3 trilhões de dólares poderiam ter reconstruído o Iraque, resolvidos muitos problemas e feito muitos amigos!
Essa guerra, apesar de ter começado com a admissão de um novo século, se desenvolveu e foi concluída deixando tudo como sempre foi na região, apenas com mais destruição e alguns novos inimigos mortais. Se começou, então precisava ter sido concluída com a transformação da sociedade iraquiana, ao invés de ter realizado a retirada das tropas estadunidenses anos depois, sem ter garantido que uma mudança real tivesse sido plantada. O pior é que o mesmo se deu no Afeganistão, que, hoje, não apenas fez reacender a chama dos inimigos de outrora, como ainda trouxe à baila o grande adversário atual dos EUA para dentro do território afegão, a China! Em síntese, os 20 anos da Guerra do Iraque, que poderia marcar o início da nova era, mostrou apenas que o mundo ainda está na espera da definição de quem mandará na ordem mundial.
Tudo leva a crer que os norte-americanos estão apostando no desgaste dos seus adversários para preservar o seu status, mas, juntamente com essa aposta eles estão desgastando também os seus aliados e esgotando sua própria força. O problema é que, nessas condições sempre impera o mais bruto! A nós cabe perguntar quem é ou será este protagonista que caminhará num mundo com todos os problemas do século XXI e sem a vantagens do século passado, uma vez que agora parece não haver mais líderes capazes de encantar a história! O ideal seria que os brutos não entrem no salão de dança e os inteligentes voltem a ser protagonistas, mas…! Nesse momento me veio a memória e já que estamos falando de Estados Unidos: que saudade de Ronald Reagan!
*Marcelo José Ferraz Suano é cientista político e internacionalista, professor de Relações Internacionais e diretor do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI).