No livro “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, o doutor Henry Jekyll cria uma poção capaz de dividir sua personalidade em duas. Uma é dócil. A outra, porém, é imprevisível e se manifesta através de um alter ego, o descontrolado Edward Hyde. Com o tempo, Jekyll, na forma de Hyde, se torna o seu maior inimigo. A trama de Stevenson, publicada em 1886, é uma metáfora adequada para o que acontece hoje com a direita brasileira. Muitas vezes, ela é quem proporciona as melhores chances para que a esquerda se recupere em momentos de dificuldades.
Isso aconteceu, por exemplo, no meio do ano. Em maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passava por seu pior momento de reprovação: 57% dos brasileiros o reprovavam e ele tinha o apoio de apenas 40% da população. Tudo indicava naquele momento que Lula estava acabado politicamente. Até que o deputado Eduardo Bolsonaro surgiu no cenário como o principal responsável por ter insuflado o tarifaço dos Estados Unidos em direção aos produtos brasileiros. Isso proporcionou ao Planalto uma bandeira para chamar de sua – e foi aí que a popularidade de Lula começou a melhorar.
Um pouco mais tarde, os políticos do Centrão resolveram criar um salvo-conduto para deputados e senadores contra qualquer ação da Justiça, a chamada PEC da Blindagem. Foi a chance que os movimentos de esquerda aguardavam para voltar a colocar militantes e simpatizantes nas ruas, algo que não se via há muito tempo. Milhares de pessoas protestaram em mais de 30 cidades brasileiras, reacendendo um fogo que parecia estar morto.
Nesta semana, tivemos outro exemplo desta curiosa especialidade da direita brasileira – a de dar tiros no próprio pé. A chamada PL Antifacção, com relatoria do deputado Guilherme Derrite (imagem), conseguiu um feito que parecia ser impossível: deu forças ao governo para discutir segurança pública, justamente o maior calcanhar de Aquiles na administração federal.
Como se sabe, Derrite – secretário licenciado de Segurança Pública do estado de São Paulo – quis esvaziar o papel da Polícia Federal no texto da PEC, algo que criou desconforto em várias camadas do poder, incluindo alguns governadores que se alinham com a oposição. Eles, inclusive, pediram ao presidente da Câmara, Hugo Motta, que adiasse a votação do PL, o que acabou acontecendo.
Percebe-se que frequentemente a direita se perde em bravatas apenas para movimentar a militância e o debate nas redes sociais. Até aí, tudo bem. Mas diversas vezes, os conservadores se perdem em discussões inúteis apenas para desopilar o fígado e cutucar a esquerda. Porém, acabam criando condições para que o debate favoreça o outro lado.
Uns chamam isso de obtusidade. Outros creditam essas atitudes como fruto da inexperiência política. Qualquer que seja o motivo, no entanto, o fato é que a direita vive em ritmo de “stop-and-go” porque está dando constantemente à esquerda chances de recuperação.
Políticos e intelectuais de esquerda estão sempre em discussão interna e debatem as consequências de seus atos; já os líderes de direita são tomados pela certeza absoluta de suas convicções e não avaliam direito o que pode resultar de suas ações. Em um artigo de 1933, o filósofo Bertrand Russel disse o seguinte: “O problema é que, hoje em dia, os tolos têm plena certeza de tudo, enquanto os inteligentes vivem cheios de dúvidas”. Daqui para a frente, talvez os conservadores precisem duvidar um pouco mais de suas certezas para deixar de dar munição ao outro lado – ou simplesmente pensar mais nas consequências de seus atos.
















