Vivemos um momento de inflexão histórica: o Brasil deixou de apenas sonhar com ser potência, agrícola ou industrial, e passa a desenhar um novo papel para si. Com mais de 85% da matriz elétrica proveniente de fontes renováveis, o país adquire uma credencial energética rara no mundo.
Quando se combina essa condição com um território vasto, uma juventude numerosa e recursos em minérios estratégicos (como o lítio e o nióbio), surge uma janela para transformar vantagem natural em vantagem competitiva, e não apenas exportadora.
Essa é a lógica da “industrialização das vantagens comparativas”: usar aquilo que já fazemos bem, energia limpa, agronegócio robusto, mineração estratégica, como alicerce para construir indústrias de valor e tecnologias de ponta.
Mas esse salto exige mais: exige visão sistêmica, execução disciplinada e uma aliança internacional inteligente, e aí entra o papel do Itália.
Energia limpa: o “novo petróleo”
O Brasil está entre os líderes globais em participação de renováveis. Segundo dados recentes, 87% da eletricidade brasileira provém de fontes renováveis, o que coloca o país no patamar mais elevado dentro do G20.
Esse diferencial energético torna o país um destino natural para indústrias intensivas em energia, o movimento de “powershoring” tende a deslocar fábricas para nações com eletricidade limpa, estável e abundante.
Na prática: no Pará, por exemplo, fábricas já produzem alumínio com emissões até 70% menores do que na Europa ou China. Na siderurgia de Minas, a transição para hidrogênio verde está em testes e, se der certo, o Brasil passa de exportador de minério bruto a fornecedor de ferro-gusa de baixo carbono. Em resumo: energia limpa não é mais apenas sustentabilidade, é vantagem competitiva industrial. E o Brasil já tem essa vantagem.
Agronegócio que vira tecnologia
O agro-brasileiro aprendeu a escalar; agora precisa aprender a sofisticar. Plantas de biocombustíveis, bioplásticos, agroindústrias de proteína vegetal: tudo indica que o território agrícola está em evolução para um papel industrial-tecnológico.
Segundo relatório da International Energy Agency (IEA), o Brasil foi pioneiro na combinação de mandatos de biocombustível, incentivos financeiros e sustentabilidade e, ainda hoje, lidera no setor de bioenergia.
Os números reforçam: o investimento em transição energética no Brasil atingiu cerca de US$ 35 bilhões em 2023, o sexto mais alto do mundo e o maior entre emergentes fora da China. Se o agro deixar de doar matéria-prima e passar a fabricar tecnologia e processos, abre-se uma nova fronteira: o agroindustrial-tecnológico.
Minérios, baterias e cadeia de valor
Há um êxodo em curso: de exportador de minérios para protagonista na cadeia de valor das tecnologias limpas. O lítio no Vale do Jequitinhonha é o exemplo mais simbólico, se industrializar internamente, o Brasil pode repetir (com ganhos reais) o ciclo prometido pelo pré-sal.
O Brasil já mostra que pode: empresas como a CBMM, com o nióbio, demonstram que ciência, produção e energia limpa podem convergir. O desafio agora não é só extrair, mas processar, fabricar baterias, reciclar, ou seja, participar das cadeias globais ao invés de apenas fornecer insumos.
Cidades médias, empregos reais
Um dos equívocos da industrialização recente foi concentrar tudo nas metrópoles. A nova agenda aponta para polos em cidades médias: lugares com energia abundante, universidades, espaço para expansão. Uberlândia, Rondonópolis, Marabá, Petrolina, tornam-se capitais de um modelo mais inclusivo.
Industrializar não é só crescer; é incluir. É levar empregos qualificados para fora dos eixos tradicionais, conectar campo, cidade e tecnologia. E é também reduzir desigualdades com base econômica, não apenas social.
As travas e a coragem
Nenhum salto industrial se faz apenas com boas intenções. O Brasil ainda enfrenta o “Custo Brasil” em sua versão moderna: burocracia complexa, carga tributária elevada e estrutura estatal que confunde subsídio com estratégia.
Segundo o relatório da Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD), embora o PIB do país tenha projetado crescimento de 3,2% em 2024, o investimento total permanece abaixo da média global: 17,8% do PIB em 2022, segundo estimativa. Ou seja: o dinheiro existe, o problema está no roteiro, no prazo, na ambição privada. Empresas como WEG, Embraer e Suzano mostram que a excelência brasileira é possível, a questão é torná-la normativo, não exceção.
Itália: o parceiro natural
Se buscamos uma aliança que combine escala e sofisticação, o parceiro está claro: a Itália. Mais do que país, uma cultura produtiva. O modelo dos “PMI” – pequenas e médias indústrias italianas – sempre venceu pela qualidade, não pela massa. E esse perfil combina com o Brasil que quer polos regionais, sustentáveis, tecnológicos.
Enquanto o Brasil oferece energia limpa e matéria-prima, a Itália traz tecnologia de processo, design industrial, know-how em manufatura avançada. Essa simbiose é rara: força mais forma; escala mais detalhe.
E os números corroboram: o comércio bilateral entre Brasil e Itália atingiu cerca de € 7,89 bilhões nos primeiros nove meses de 2024, com crescimento de 17,7% nas exportações brasileiras para a Itália. Mais de 1.100 empresas italianas atuam no Brasil, reforçando a ponte industrial já existente. Portanto, o que está em jogo não é apenas comércio, é uma aliança estratégica para a transição verde.
Podemos ter matéria-prima, energia, visão, mas, sem capital humano qualificado, o salto será parcial. Aqui, o par ítalo-brasileiro brilha novamente: imagine parcerias entre o Politecnico di Milano, a Bocconi ou a Sant’Anna di Pisa com a Fundação Dom Cabral, o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) ou a Universidade de São Paulo (USP), em ensino e pesquisa de materiais avançados, sustentabilidade, manufatura digital.
Essa formação de “engenheiros verdes ítalo-brasileiros” será tão estratégica quanto tratados comerciais.
Um renascimento verde
A Itália foi o berço do Renascimento. O Brasil pode ser o palco do Renascimento verde. Não é metáfora vazia: é a fusão da indústria limpa, digital e descentralizada, e esse eixo Brasil–Itália tem as peças certas para liderar.
O Brasil traz energia, matéria-prima, juventude. A Itália, método, sensibilidade, tecnologia. Juntas, podem entregar um modelo de desenvolvimento que seja ao mesmo tempo eficiente e belo, que produza riqueza e equidade, que una progresso e sustentabilidade.
Industrializar o verde não é apenas crescer. É civilizar. É desenhar o tipo de país que queremos deixar — com empregos de qualidade, regiões competitivas, ecossistemas vivos, em vez de zonas periféricas condenadas ao atraso.
Hoje, o Brasil tem a chance de não apenas ser o celeiro do mundo, mas também a fábrica sustentável do planeta. E a Itália pode ser o seu parceiro natural nessa virada histórica.
O desafio agora é simples e imenso: transformar vantagem natural em poder industrial, com a coragem de quem decide que o futuro não se espera, se constrói.
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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