Diz o ditado popular: a necessidade é a mãe de todas as inovações. Ao observarmos a trajetória do automóvel elétrico no Brasil, percebemos como esta máxima se aplica com clareza. Apesar do avanço global desta tecnologia, ainda ecoa no país um discurso resistente, quase sempre ancorado na ideia de que o brasileiro percorre grandes distâncias e que, por isso, teria dificuldades de adotar veículos que dependam de pontos de recarga. Trata-se, porém, de uma leitura parcial, que ignora tanto os benefícios estruturais quanto os obstáculos políticos e econômicos que se apresentam. No caso brasileiro, quatro grandes inimigos se colocam no caminho do carro elétrico.
O crime organizado e os postos de gasolina
Como revelou recentemente a Operação Carbono Oculto, grande parte da rede de postos de combustíveis está infiltrada por organizações criminosas. O posto de gasolina, em muitos casos, não é apenas ponto de abastecimento, mas instrumento de manipulação de produto, a famosa gasolina “batizada”, e de lavagem de dinheiro. A difusão do carro elétrico representa ameaça direta a esse modelo, uma vez que descentraliza o processo de abastecimento. Com a possibilidade de instalar pequenas estações ou mesmo carregar o automóvel em casa, o monopólio tradicional dos postos se fragiliza, retirando das mãos do crime organizado uma de suas fontes mais lucrativas.
A indústria do etanol no Brasil
Outro adversário poderoso é a indústria do etanol. Desde o início do programa Pró-Álcool, o setor se sustenta em fortes subsídios pagos indiretamente pelo consumidor. Basta lembrar que o motorista brasileiro é obrigado a utilizar gasolina misturada com 30% de etanol, arcando com os custos de um produto que não escolheria livremente. O argumento da sustentabilidade, embora válido em parte, não esconde uma contradição evidente: em um país com problemas crônicos de fome e logística agrícola deficiente, destinar extensas áreas para combustível em detrimento de alimentos é opção de racionalidade questionável. A ascensão do carro elétrico ameaça este arranjo, expondo a dificuldade da indústria em caminhar sem o amparo constante do Estado.
A indústria automobilística tradicional
Acostumada a décadas de domínio e pouca inovação, a indústria automotiva ocidental encara com desconforto a velocidade com que a China se tornou líder mundial em veículos elétricos. O país asiático não apenas aperfeiçoou baterias e sistemas de recarga, mas também construiu um ecossistema industrial capaz de reposicionar toda a cadeia de valor. Esse dinamismo coloca em xeque a acomodação histórica da indústria local, que teme perder espaço num cenário em que a inovação e a eficiência tecnológica passam a ditar as regras.
A questão da energia e a urgência da expansão elétrica
O quarto inimigo é, paradoxalmente, também uma oportunidade: a necessidade de expandir a capacidade de geração elétrica do Brasil. O carro elétrico exigirá investimentos robustos em infraestrutura, o que implica repensar a matriz energética nacional. Isso significa discutir seriamente a retomada do programa nuclear, ampliar o uso de fontes renováveis e modernizar a rede de distribuição. Embora seja um desafio de monta, trata-se também de um caminho promissor: mais usinas, mais empregos, maior independência energética e redução da vulnerabilidade diante dos petrodólares. Com eletricidade mais limpa e abundante, o país poderá não apenas alimentar sua frota, mas também garantir maior renda disponível ao cidadão, que deixará de comprometer boa parte do orçamento com combustíveis fósseis e a respirar melhor.
A transição para o carro elétrico no Brasil não é apenas uma escolha ambiental, mas sobretudo uma decisão estratégica de soberania e desenvolvimento. Superar a resistência dos quatro inimigos — crime organizado, etanol subsidiado, indústria tradicional e o desafio energético — é condição essencial para que o país se insira plenamente na economia do futuro. A necessidade de inovar é inescapável. E como nos recorda o velho ditado, é justamente dela que nascem as soluções capazes de transformar sociedades. Ao invés de resistir ao inevitável, o Brasil deveria assumir a dianteira deste processo, garantindo que a inovação se converta em prosperidade compartilhada.