A combinação entre a revisão da meta fiscal das estatais, o resgate bilionário dos Correios e a mudança no cálculo do PIB potencial reforça a percepção de deterioração da âncora fiscal brasileira. Esse foi o diagnóstico dos especialistas Roberto Dumas, Bruno Musa e Carlos Honorato no Painel BM&C, apresentado por Paula Moraes na BM&C News.
Logo na abertura, Paula resumiu o pano de fundo: o Ministério da Fazenda admite que terá de alterar a meta fiscal das estatais em 2026 por causa do rombo nos Correios e, ao mesmo tempo, discute uma mudança metodológica no cálculo do PIB potencial, elevando “no papel” a capacidade de crescimento da economia, o que melhora automaticamente alguns indicadores fiscais estruturais. Para os convidados, trata-se menos de técnica e mais de direção.
Meta das estatais e o impacto fiscal: “mudar o termômetro para baixar a febre”
Roberto Dumas criticou a ideia de ajustar a meta das estatais para acomodar o prejuízo dos Correios. Ele lembrou que a meta para 2025 previa superávit de cerca de R$ 6,2 bilhões, número que foi revertido para algo perto de R$ 9 bilhões de déficit, exigindo um contingenciamento de R$ 3 bilhões.
Segundo Dumas, a discussão atual no governo, envolvendo Simone Tebet e Fernando Haddad, é elevar a meta de déficit das estatais em 2026 justamente para evitar novos contingenciamentos.
“Que tipo de credibilidade o governo quer passar se cada vez muda a meta, muda arcabouço, tira precatório? Já não existe mais. Ninguém se importa mais com meta de estatal, com meta de superávit primário”, afirmou.
Para ele, a insistência em ajustar a meta fiscal para caber no problema, em vez de ajustar a despesa ao limite estabelecido, esvazia a própria ideia de responsabilidade fiscal. “Vamos mudar a meta para fingir que atingiu a meta. Parece brincadeira.”
Estatais como instrumento político e desgaste da disciplina fiscal
Bruno Musa reforçou a leitura de que o uso das estatais é, antes de tudo, político. Ele comparou o retorno sobre patrimônio dos bancos privados, BTG, Nubank e Itaú com ROE acima de 20%, ao do Banco do Brasil, em torno de 8%, e lembrou que a gestão de empresas como a Petrobras é frequentemente orientada por objetivos que não são econômicos.
“Eles sabem usar as empresas como meio político. Diminuem lucro, pagam menos dividendos, e muito do dinheiro acaba sendo usado para politicagem”, disse.
Para Musa, o arcabouço fiscal já nasceu com desequilíbrios matemáticos, e a prática recente apenas confirma que a disciplina fiscal fica restrita ao discurso.
“Era questão de tempo para a conta não fechar. O governo fala em responsabilidade fiscal, mas muda regra, mexe em meta, empurra gasto para fora do resultado. Na vida do brasileiro, esses números não valem mais nada.”
Ele lembrou que o país convive com queda de produtividade industrial de cerca de 23% em 30 anos e criticou a desconexão entre os números oficiais e a percepção de quem lida diariamente com inflação, custo de vida e insegurança.
Dívida bruta, maquiagem e perda de credibilidade
Carlos Honorato destacou que a tentativa de “maquiar” metas e metodologias não altera o dado central: a trajetória da dívida bruta.
“Pode até haver maquiagem, mas a dívida bruta não perdoa. Quando você muda fórmula para garantir responsabilidade fiscal, é porque a responsabilidade não está na fórmula”, resumiu.
Na avaliação dele, o excesso de ajustes de regra gera confusão até na leitura dos números. “Chega um momento em que você não sabe mais o que está dentro e o que está fora do fiscal. Isso corrói credibilidade e dificulta o planejamento de longo prazo.”
Honorato lembrou ainda que o resgate aos Correios, com um empréstimo de R$ 20 bilhões, à taxa próxima de 136% do CDI e com aval do Tesouro, é um exemplo emblemático de uso de recursos públicos em uma empresa sem plano de negócios claro e com histórico prolongado de prejuízo.
Correios, incentivo errado e risco moral
A operação de socorro aos Correios foi citada como caso concreto de risco moral e de distorção de incentivos. Musa destacou que estimativas de mercado avaliam a estatal entre R$ 12 bilhões e R$ 16 bilhões, a depender do cenário, enquanto o governo discute injetar R$ 20 bilhões com garantia do Tesouro.
“Quem, em condições normais, colocaria R$ 20 bilhões em algo que vale menos do que isso? E mantendo a mesma gestão? Isso mostra que não há preocupação com o capital do pagador de imposto”, criticou.
Honorato alertou que, ao abrir esse precedente, o governo sinaliza a outras estatais deficitárias que haverá sempre uma rede de proteção financiada pelo contribuinte. “Quando você permite que empresas com modelo de negócio ruim sejam salvas com dinheiro público, você cria incentivo para que essa lógica se repita em outros casos.”
Competitividade, custo Brasil e saída de empresas
O debate também abordou os impactos de longo prazo do ambiente de negócios sobre a competitividade da economia e, por consequência, sobre a sustentabilidade fiscal.
Musa citou o caso da Lupo, empresa centenária que transferiu parte da produção para o Paraguai, alegando não conseguir competir diante da combinação de impostos, burocracia e custos trabalhistas no Brasil.
Honorato lembrou que rankings internacionais de ambiente de negócios colocavam o país entre os piores do mundo em temas como abertura de empresas e pagamento de tributos. Para ele, a agenda de produtividade e simplificação regulatória segue travada há pelo menos três décadas.
“Não é um diagnóstico de hoje. É um diagnóstico de 30 anos. Os elementos que travam a competitividade estão aí há décadas, e o país continua empurrando reformas estruturais para frente”, afirmou.
Mudança no PIB potencial: risco de distorcer o mapa macroeconômico
Além da meta das estatais, os economistas criticaram a proposta de alterar a metodologia de cálculo do PIB potencial, incluindo variáveis como energia disponível e área agrícola para elevar, no papel, a capacidade de crescimento da economia.
Honorato comparou a estratégia a um aluno que gasta mais tempo preparando cola do que estudando a matéria. “Seria mais fácil cortar gasto. Em vez disso, muda-se a fórmula para que o resultado pareça melhor. O risco é o país navegar com um mapa distorcido.”
Dumas chamou atenção para o impacto dessa mudança sobre a política monetária. Se o PIB potencial for artificialmente elevado, calcula ele, o governo pode sustentar a tese de que há mais espaço para crescimento sem pressão inflacionária, pressionando por juros mais baixos com base em um diagnóstico estatístico questionável.
“Aquilo que hoje é visto como hiato positivo, que tende a gerar inflação, pode passar a ser classificado como hiato negativo com a nova metodologia. A partir daí, vem o argumento: ‘ainda há espaço para crescer sem inflação, vamos baixar juros’. O problema é que se ignora o ponto central: produtividade.”
Risco fiscal estrutural e o horizonte de 2027
A leitura dos convidados é que o risco fiscal brasileiro deixou de ser conjuntural e passou a ser estrutural. Honorato citou o fato de o país crescer apoiado em commodities, agro e mercado de trabalho apertado, o que mascara parte da vulnerabilidade.
Dumas lembrou declarações recentes de autoridades sobre a possibilidade de um “shutdown” em 2027, diante de um orçamento cada vez mais carimbado e espaço reduzido para despesas discricionárias. Para ele, o alerta é matemático.
“Se nada for feito em termos de ajuste fiscal real, corte de gastos e revisão de privilégios, a conta chega. E chega na forma de mais dívida, mais juros e menos capacidade de o Estado cumprir suas funções básicas.”
Ao final, Musa resumiu o recado ao investidor e ao contribuinte. “Desromantizem o governo, qualquer governo. Olhem para os números. Enquanto o ajuste for feito na meta e não na despesa, o problema fiscal continua crescendo, mesmo que os indicadores digam o contrário.”
A avaliação comum dos três economistas é que, sem uma mudança concreta na política fiscal, e não apenas nas métricas, o país continuará preso a um quadro de baixo crescimento, perda de competitividade e aumento da vulnerabilidade das contas públicas.












