No mundo dos dispositivos legais, muitas vezes as autoridades miram em um alvo e acabam acertando em outro. E nem sempre o final desta história é feliz. Tome-se como exemplo o Decreto-Lei de número 898, expedido em 1969. O governo militar quis equiparar presos políticos a criminosos comuns. Havia duas intenções: coibir os assaltos a bancos, que financiavam a guerrilha, e humilhar a militância.
Com isso, combatentes de esquerda passaram a dividir celas com assaltantes e traficantes em presídios como o Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande. A convivência forçada entre esses grupos criou um ambiente de troca: os militantes ensinavam organização, disciplina e códigos de conduta, enquanto os criminosos assimilavam estratégias coletivas.
Quando os presos políticos foram libertados com a Lei da Anistia, em 1979, os criminosos comuns assumiram o controle interno das cadeias. Inspirados pela estrutura deixada pelos guerrilheiros, criaram a Falange Vermelha, que evoluiu para o Comando Vermelho. A facção passou a organizar fugas, impor regras nos presídios e, pouco depois, atuar no tráfico de drogas.
Agora, o presidente da Câmara, Hugo Motta, pode incorrer em um erro semelhante. Em função da escalada da violência e da expansão do crime organizado, ele quer ressuscitar o projeto que instituiu o voto distrital misto no Brasil, sob o argumento que o novo sistema dificultaria a infiltração de interesses criminosos no processo eleitoral. Os defensores da proposta, ainda, afirmam que, hoje, quase 90% dos eleitores não se lembram em quem votaram nas últimas eleições. Mas, com o voto distrital, passariam a ter uma relação mais próxima com o deputado federal, semelhante a aolgo já existe com os prefeitos – e isso mudaria o jogo político.
Ocorre que o projeto traz em si dois problemas.
O primeiro é não barrar necessariamente a entrada do crime organizado na política. Caso os distritos tenham um peso forte na eleição, a chance de um representante do crime ser eleito pode até aumentar. Além disso, o projeto aumenta desproporcionalmente a força dos dirigentes partidários e dilui substancialmente o poder dos atuais deputados.
Atualmente, a escolha de deputados federais, estaduais e de vereadores é feita pelo sistema proporcional de lista aberta. O eleitor vota em um candidato ou em um partido e todos os votos atribuídos à mesma legenda são somados. Esse total determina quantas cadeiras o partido ou federação terá direito. Se uma sigla conquistar, por exemplo, três vagas, os três candidatos mais votados dentro dela são eleitos, mesmo que outros, de fora do partido, tenham recebido mais votos individuais.
Em São Paulo, por exemplo, Guilherme Boulos obteve cerca de 1 milhão de votos e sua votação elevou o desempenho da legenda, permitindo a eleição de outros nomes como Erika Hilton, Sâmia Bomfim, Luiza Erundina, Sônia Guajajara, Ivan Valente e Luciene Cavalcante. Alguns desses candidatos, embora já conhecidos, não teriam alcançado o quociente necessário sem o impulso gerado por Boulos.
No modelo distrital misto, a distribuição das vagas ocorreria em duas etapas. Primeiro, o estado seria dividido em distritos eleitorais, e cada um elegeria um representante, que será o candidato mais votado da região. Essa etapa corresponde à metade das cadeiras disponíveis.
Com isso, o novo modelo reduz o impacto dos chamados puxadores de voto – uma mudança que não necessariamente é ruim. Mas minorias, políticos e partidos que se beneficiam do chamado voto de opinião, mais disperso, podem perder espaço.
E como seriam eleitos os demais deputados? É aqui que se vê o aumento do poder dos mandachuvas partidários. A outra metade seria preenchida com base no voto dado aos partidos. Cada legenda apresenta uma lista pré-ordenada de candidatos, chamada de lista fechada, e as vagas são distribuídas proporcionalmente à votação recebida pela sigla em todo o estado. Na prática, assim, os diretores das siglas vão escolher metade dos deputados, pois eles é quem mandariam nessas listas. Nesse novo sistema, o eleitor teria dois votos: um para o candidato do seu distrito e outro para o partido.
Diante de tudo isso, é impossível ignorar o peso histórico e político de uma proposta como essa. O voto distrital misto não seria apenas uma mudança técnica no sistema eleitoral e sim uma reconfiguração profunda das forças que moldam a representação política no Brasil. Como já vimos no passado, decisões tomadas sob o pretexto de combater um mal podem, inadvertidamente, alimentar outro ainda mais difícil de controlar.
A proposta está parada na Câmara há anos. Ressuscitá-la agora, sem um amplo debate público, sem ouvir especialistas, movimentos sociais e a própria sociedade civil, seria um erro grave. Muitos deputados sabem disso. Se votarem a favor, neste momento, podem abrir mão de sua base eleitoral, de sua autonomia política e, em última instância, de sua própria sobrevivência parlamentar. É um gesto que beiraria o suicídio político.
Qualquer reforma que mexa nas engrenagens da democracia precisa ser discutida com a democracia em pleno funcionamento. Não pode ser aprovada às pressas, sob o manto da urgência ou da conveniência. Porque, como já se provou antes, quando se mira no crime e se acerta na democracia, o prejuízo é de todos.
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