Durante os últimos dez meses, o mundo viveu um ruído ensurdecedor de análises: globalização, desglobalização, cadeias de suprimento, geopolítica, “nova ordem mundial”. Mas o palco está tomado por comentaristas, e não por protagonistas. Economistas discutem slides, analistas debatem relatórios, professores teorizam. Enquanto isso, os verdadeiros jogadores, países, corporações e blocos estratégicos, já estão movendo as peças.
Há, hoje, três mundos convivendo no mesmo planeta: um mundo que comenta, feito de vozes que interpretam; um mundo que assiste e reage, tentando adaptar-se às decisões alheias; e um mundo que atua e desenha o futuro, redesenhando a geografia do poder e da produção. E é entre esses três ritmos que a nova globalização se reorganiza, silenciosa, mas decisiva.
A globalização que não acabou, apenas mudou de natureza
Na prática, não houve desglobalização. O que existe é uma globalização seletiva, guiada por segurança, política e estratégia, e não mais apenas por custos.
Os fluxos de bens, capitais e dados continuam intensos, mas seguem novas fronteiras e novas regras. O mundo deixou de ser um mercado único para se tornar uma rede de blocos interligados, cada um tentando proteger o que considera vital.
Nos anos 1990 e 2000, a globalização era movida pela eficiência, produzir onde fosse mais barato e vender aonde fosse mais caro. O planeta virou uma fábrica integrada. Mas a pandemia, a guerra da Ucrânia e as tensões entre EUA e China revelaram a vulnerabilidade desse modelo.
O que antes era símbolo de eficiência — cadeias longas, estoques mínimos — virou risco estratégico. Hoje o eixo global mudou: o valor deixou de estar na eficiência e passou para a segurança.
Governos e empresas preferem pagar mais para garantir estabilidade. Montam estoques, diversificam fornecedores, encurtam rotas. O “just in time” virou “just in case”. Não é o fim da globalização, mas sua reinvenção: menos aberta, mais política, mais calculada.
A guerra das cadeias
A pandemia e a guerra da Ucrânia deixaram uma lição: quem não controla o próprio suprimento, perde poder. Desde então, países agem como corporações e corporações agem como Estados.
O reshoring, friend-shoring e near-shoring estão redesenhando o mapa industrial. O México virou a China da América; a Índia disputa a liderança fabril; o Vietnã floresce como nova fronteira produtiva. O Brasil, ainda indeciso, observa de fora, preso entre ser fornecedor de recursos ou produtor de valor.
As cadeias de suprimentos tornaram-se instrumentos de poder. Controlar chips, energia ou minerais críticos vale mais que qualquer exército. A disputa entre Estados Unidos e China é menos sobre comércio e mais sobre quem dita as regras da produção global. O container que antes cruzava oceanos agora percorre distâncias curtas, dentro de alianças previsíveis. É o fim do “mais barato em qualquer lugar” e o início do “melhor sob controle”.
A América Latina no tabuleiro
Neste rearranjo global, a América Latina emerge como uma fronteira estratégica. A proximidade com o mercado norte-americano, a abundância de recursos naturais e o potencial energético transformam a região em alternativa natural às cadeias asiáticas.
O México já colhe frutos do near-shoring, atraindo indústrias de eletrônicos, automóveis e semicondutores. Chile e Argentina tentam consolidar-se como potências do lítio. A Colômbia busca diversificar sua matriz exportadora. E o Brasil — maior economia e maior aposta — vive a chance de liderar uma industrialização verde, ancorada em energia limpa e agroindústria tecnológica.
A América Latina tem o que o novo mundo valoriza: energia barata, segurança alimentar, espaço físico e estabilidade relativa. Mas para converter potencial em poder, precisa de infraestrutura, integração logística e previsibilidade institucional. O desafio da região é transformar vantagem natural em estratégia industrial, e não repetir o velho papel de exportadora de matérias-primas.
Se souber coordenar seus ativos — energia, alimentos, minerais e tecnologia — o continente pode tornar-se o polo de segurança produtiva do Ocidente, o elo que equilibra custo, sustentabilidade e confiabilidade.
O novo mapa do poder
Enquanto teóricos discutem o fim da globalização, a prática mostra o contrário: o mundo segue interligado, mas por novos fios. Países ricos internalizam o que é estratégico. Emergentes disputam o papel de alternativa. Cadeias se duplicam, governos subsidiam, corporações se adaptam. A energia, os chips e os dados se tornaram armas econômicas.
O que está em curso não é um colapso, mas uma reorganização. A globalização não morreu, amadureceu. Deixou de ser espontânea para se tornar intencional. E o poder, agora, depende menos de tamanho e mais de capacidade: de transformar matéria-prima em inteligência, vulnerabilidade em força.
O Brasil e a América Latina ainda podem ocupar um lugar central nesse tabuleiro, se entenderem que o jogo não é mais sobre custo, e sim sobre confiança, propósito e integração estratégica. Há um mundo que comenta, um mundo que reage e um mundo que age. O futuro será desenhado por este último.
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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