Existe um mito enraizado na nossa cultura: o do brasileiro cordial. A expressão, cunhada por Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, não se refere à gentileza ou à simpatia, como muitos pensam, mas à predominância das relações pessoais sobre as instituições. O “homem cordial” age movido pela emoção, pelo afeto e pela informalidade. Até aí, tudo bem.
Mas, ao contrário do que muitos pensam, Holanda não quis dizer com isso que nós somos um povo pacífico. Essa pretensa cordialidade não impede o conflito; ao contrário, pode até intensificá-lo quando as estruturas formais são ignoradas em nome de interesses pessoais ou regionais.
É nesse contexto que se torna ainda mais questionável a afirmação proferida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a 4ª. Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos com a União Europeia, em Santa Marta, na Colômbia: “Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar intervenções ilegais. Somos uma região de paz e queremos permanecer em paz.”
A frase de Lula abraça uma tese enganosa – a de que o brasileiro (e o sul-americano por tabela) é plácido. O presidente ignora uma longa trajetória de conflitos armados, guerras civis, repressões políticas e disputas territoriais que marcaram o Brasil e seus vizinhos. A ideia de uma América Latina pacífica é mais uma construção retórica do que um retrato fiel da realidade.
A Guerra da Independência do Brasil, empreendida entre 1822 e 1824, é um exemplo claro de como a separação de Portugal não foi um processo pacífico. Províncias como Bahia, Maranhão, Piauí, Grão-Pará e Cisplatina resistiram à ruptura, obrigando o Brasil a montar às pressas um exército, adquirir armas e contratar mercenários. Batalhas como a do Jenipapo (Piauí) e o cerco a São Luís do Maranhão deixaram entre 2.000 e 3.000 mortos. A independência, portanto, foi conquistada com sangue, suor e lágrimas.
Quatro décadas depois, a Guerra do Paraguai (1864–1870) escancarou ainda mais a fragilidade da paz regional. O conflito envolveu Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, com disputas por influência política, controle territorial e livre navegação nos rios da bacia platina. O estopim veio quando o presidente paraguaio, Solano López, resolveu aprisionar um navio brasileiro e invadir o Mato Grosso. A guerra foi devastadora: cerca de 300.000 mortos e o Paraguai praticamente arrasado (cerca de 70% dos homens daquele país foram mortos durante o conflito). Consequentemente, é difícil sustentar a ideia de paz no continente diante de tamanha destruição.
Em 1932, o estado de São Paulo se rebelou contra o governo provisório de Getúlio Vargas. A Revolução Constitucionalista foi uma resposta à centralização do poder e à ausência de uma nova Constituição. O levante mobilizou 35.000 soldados paulistas, durou três meses e deixou cerca de 2.000 vítimas fatais (houve uma trégua no combate, para levar o caixão do corpo de Alberto Santos Dumont de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde seria velado). Apesar da derrota militar, o movimento paulista pressionou Vargas a convocar uma Assembleia Constituinte em 1934. Mais uma vez, a paz foi interrompida por armas e sangue.
O golpe militar de 1964 mergulhou o Brasil numa ditadura que duraria 21 anos. Prisões ilegais, assassinatos e tortura vieram do lado do governo; e guerrilhas, sequestros e assaltos a bancos foram as ações do lado dos radicais de oposição. Um cenário muito distante de ser descrito como harmonioso.
Nos anos 1980, conflitos entre garimpeiros e indígenas na Amazônia mostraram que a violência não se limita à esfera política. Disputas por terra e recursos naturais resultaram em mortes, expulsões e destruição de comunidades. A chamada “fronteira agrícola” avançou com sangue e fogo.
Hoje, o Brasil enfrenta uma guerra urbana silenciosa. Facções criminosas disputam território, o Estado responde com operações policiais e a população fica no meio do fogo cruzado. Favelas são ocupadas por blindados e helicópteros. Um cenário nada harmonioso.
Fora do Brasil, a América Latina também está longe de ser um oásis pacífico. A guerra civil na Colômbia durou mais de 50 anos, com centenas de milhares de mortos. O conflito armado no Peru contra o Sendero Luminoso foi igualmente brutal. El Salvador, Guatemala e Nicarágua viveram guerras civis marcadas por massacres e ditaduras. Mesmo hoje, países como Haiti e Venezuela enfrentam crises que envolvem milícias, repressão e violência política.
A retórica da “região de paz” ignora tudo isso. Trata-se de uma narrativa oportunista e desconectada da realidade. A história latino-americana — e brasileira — é marcada por conflitos armados, repressão, disputas territoriais e guerras internas. A paz, quando existe, é frágil, negociada ou imposta. Não é um traço permanente da nossa identidade e sim uma conquista que ainda está longe de ser garantida.