
Em 1998, a banda brasileira de rock Titãs lançou uma música de autoria de Nando Reis, chamada “Os Cegos do Castelo”. Quando foi entrevistado para explicar o que a letra queria dizer ele informou que ela tinha muitos significados e várias interpretações são possíveis. Dentre elas, há uma muito interessante que está em um blog chamado “Escritor Errante”, sobre a qual parece não ter ocorrido contestação.
Nessa, está dito que a música expressa uma passagem pessoal do compositor, e transmitia esperança, tendo um significado de seguir em frente, pois ele a compôs num momento em que estava largando seu vício, que tanto lhe atrapalhou a vida. O seguir adiante indicava, acima de tudo, ultrapassar algo que lhe bloqueava, impedia de olhar aquilo que tinha diante de si, deixando para trás o período de sua existência entupido de erros, dores, procurando um futuro melhor!
Um passado de erros, vícios, a droga que impede de seguir em frente, a qual, ao que tudo indica, contamina o espírito e não permite que se veja a realidade diante dos próprios olhos (tal qual está no “Escritor Errante”)!. Que interessante! Os primeiros versos são transparentes:
“Eu não quero mais mentir
Usar espinhos que só causam dor
Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu
Dos cegos do castelo me despeço
E vou a pé até encontrar
Um caminho, o lugar
Pro que eu sou”.
(Nando Reis)
De forma atraente, no sábado, 18 de fevereiro de 2023, o presidente do Chile, Gabriel Boric, classificou o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, como… Ditador! O fez logo após analisar as ações do nicaraguense, que retirou a cidadania de noventa e quatro opositores. Isso mesmo, retirou a cidadania de nicaraguenses, de cidadãos do seu país! Mas a ação da autoridade da Nicarágua não causou surpresas, apesar de, neste ato, ter perseguido até mesmo antigos aliados, de primeira cepa, diga-se de passagem, que estiveram juntos com ele, como é o caso de Sergio Ramírez, que na década de 1980 chegou a ser seu vice.
Além dele, aplicou a caneta contra o bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez; Luis Carrión, que foi um dos nove comandantes do Diretório Nacional Sandinista (da FSLN – Frente Sandinista de Libertação Nacional); a escritora Gioconda Bellienos; e vinte e dois jornalistas e ativistas de direito humanos.
Segundo Ortega e seus companheiros atuais, a acusação que justifica tal ignomínia foi “traição à pátria”. Acessoriamente, confiscou os bens e empresas dos supostos criminosos, cassou os direitos de concorrer em eleições e exercer cargos públicos. Não podemos esquecer que poucos dias antes tinha deportado para os EUA duzentos e vinte e dois outros “traidores da pátria”.
Boric se manifestou mostrando parecer compreender que a esquerda latino-americana não se configura apenas pelo “ódio do bem”, mas também pode destilar “ódio do mal” e, além disso, que pode ser antidemocrática, destruidora do estado democrático de direito e capaz de construir e fazer nascer “ditadores”, como está nas palavras do próprio mandatário chileno.
Tal qual consta no seu Twitter, chegou a afirmar que o “ditador” nicaraguense (Ortega) não entende o significado de Pátria, pois “…a pátria está no coração, nos atos e não se priva por decreto. Não estão sozinhos!”. Assumiu também que a Nicarágua vive plenamente uma “ditadura autoritária”.
Com isso, o país sul-americano, que até a pouco tempo era visto como uma referência em políticas públicas, mas decidiu migrar para uma nova experiência socialista, aparece como o primeiro governo esquerdista latino-americano a afirmar que Ortega, com suas medidas, bem como a Nicarágua, com seu regime, são condenáveis! Numa forma mais simples: estão errados, tanto o regime, quanto o chefe de estado! Ressalte-se que, no entanto, não está sendo muito acompanhado pelos companheiros do castelo, pois, mesmo que Colômbia e México tenham se manifestado de forma neutra, os demais países com governos à esquerda ainda titubeiam, tendo aparecido nesta semana a Argentina e os mesmos Colômbia e México, além dos próprios chilenos, concedendo abrigo aos exilados nicaraguenses, o que, por si, já é um grande avanço! Murmúrio e silêncio quase constrangedores, no entanto, são as respostas ao que vem ocorrendo.
Ressalte-se que, no Brasil, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em declaração estarrecedora, solicitou ao governo brasileiro, hoje sob a égide do Partido dos Trabalhadores (PT), que também concedesse abrigo, declarando em nota “O PSOL repudia a retirada de direitos civis que levou ao exílio nicaraguenses da oposição, valoriza a posição dos governos da Argentina, Chile, Colômbia e México por declararem abrigo em seus países e espera que o Brasil também receba e acolha quem perdeu a sua nacionalidade nicaraguense por perseguição política”.
É uma raridade que haja manifestações discordantes desse teor entre militantes do mesmo viés, exceto, se não passar de uma manobra diversionária para propaganda, tentando mostrar que também estão acompanhando o repúdio que a atitude do governo da Nicarágua causa, mas, para não dizer que não falaram das flores e para manter o DNA, foram exatamente onde sempre vão, quase dizendo que este deslize deve ser visto sem esquecer quem é o grande vilão de sempre: o império norte-americano. E foram precisos na sua natureza de escorpião declarando também: “Nós não queremos ser fiscais de ditadura, nem dar certificado de democracia. Quem faz isso são os EUA…”.
O que nos traz à reflexão é que o Chile, mesmo neste momento em que a esquerda assumiu o governo, tem dado exemplos de que pode novamente ser um pilar diferenciador, com seu governante podendo estar desejando constituir-se como um cego que quer se despedir dos seus pares, talvez até começando a enxergar, mesmo porque sua eleição não lhe deu condições de fazer o que quisesse no país, exceto se voltar a andar de mãos dadas com seus amigos de cegueira e se tornar uma versão chilena de Ortega, já que não tem amplo apoio popular, pois foi escolhido Presidente em um país mais que dividido.
Apenas para lembrarmos da eleição presidencial de 2021 e ilustrarmos melhor a sua situação, Boric chegou ao cargo perdendo no primeiro turno com diferença de 2,1%, com o adversário José Antonio Kast conseguido 27,9% contra os 25,8% que ele recebeu, destacando-se que com uma abstenção pouco acima de 53%. No segundo turno, apesar de ter conseguido reverter e vencer o pleito com maior diferença, alcançando 55,87% contra 44,13% de Kast, isso se deu com uma abstenção de 44,35%.
Apesar de abstenções altas não serem atípicas no Chile, se olharmos diretamente para o eleitorado (Total de 15.030.974 eleitores, tendo votado 8.364.534), bem como para a população (segundo o Banco Mundial, 19,49 milhões em 2021; ou 19.683.086, agora em 2023, de acordo com o Department of Economic and Social Affairs Population Division), Boric foi eleito com 31,09% dos eleitores, ou 23,74% da população, aproximadamente, deixando de lado quaisquer taxas de erro, pois tudo que se está colocando aqui é aproximado.
Claro que todos dirão que isso faz parte do exercício democrático e da lógica do sistema político, estando, sim, tais questões contempladss, bem como que se deve ter claro que aqueles que são apáticos que sofram as consequências das escolhas feitas pelos que não são. Mas, não é disso que se trata e sim de que fica muito claro porque não adianta dizer que o povo tem de acolher as decisões políticas de um presidente que venceu com ilusórios 55,87% dos eleitores, mas que, na realidade, tem a discordância ou indiferença de 3/4 do povo, que não concordam com ele ou não estão nem aí para seus devaneios e se mobilizarão apenas quando sentirem seus interesses individuais sendo afetados em pontos sensíveis.
Isso explica, em especial, a razão pela qual Boric tomou uma surra no Referendo pela nova Constituição e teve de refazer o processo, aceitando recuar em pontos que achava que conseguiria empurrar para todo um povo que, como se sabe, é majoritariamente conservador nos costumes e liberal na economia. Por isso teve de pactuar com a direita no país e no Legislativo para tratar de uma nova Constituinte, tal qual bem apresenta Dani Alves em seu artigo “O efeito Orloff Chileno para a América Latina: o futuro depende do que fazemos no presente”, no qual ela apresenta que, entre vários tópicos, foi acordado que “haverá respeito à propriedade privada, a autonomia do Banco Central, um Congresso bicameral e a separação dos poderes”, e que “Estas diretrizes acabam apresentando um equilíbrio mais adequado do que a proposta anterior rejeitada pela sociedade, ainda que os princípios orientadores sejam amplos e abertos a múltiplas interpretações”.
Parece que o governo chileno está entendendo que se governa um país respeitando a realidade, ao invés de confrontá-la para impor um sonho inexequível. Não à toa também está participando das negociações da “Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica” (APEP, sigla em inglês), atuação que pode ser vista melhor em outro artigo da mesma autora, também na BM&C.
Mas o que nos interessa é entender se o Chile será o esquerdista destoante na atual realidade latino-americana. Boric está dando sinais de que começa a perceber que precisa sair do castelo, de que entende que está cercado de cegos viciados numa droga ilusória de sonhos que justificam as violências usadas para alcançá-los, algo que os maus leitores de Maquiavel replicam tolamente afirmando que os fins justificam os meios, como se Maquiavel tivesse desejado falar apenas isso, esquecendo o conteúdo de toda a sua obra que demonstra que há norteadores para as ações do líder e que o poder pelo poder ou por uma causa quimérica traz o status mas não a glória (“lembrem-se de Agátocles, tirano de Siracusa, obteve o poder mas não a glória”).
Esperamos que Boric tenha descoberto que seus pares pelo continente são todos Agátocles que estão chegando ao poder e passam a justificar suas ferocidades pela busca do sonho de igualde, razão pela qual consideram correto construírem brutalmente este castelo rubro, mesmo que ao custo da destruição de seus países por toda a região. Certamente, por isso, jamais terão a glória, até porque a história nos mostra que suas experiências apenas destroem a sociedade. E ele, se não estiver sendo um farsante, é capaz que se torne outra coisa, mas terá de “querer não mais mentir”, parar de “usar espinhos que só causam dor” e se afastar desse “inferno (rubro) que o atraiu”.
Porém, o mais difícil é que terá de se preparar para as pancadas que receberá dos outros cegos desse castelo vermelho da América Latina, dos quais necessitará se despedir, já que eles não querem se afastar da droga que lhe iludem de que estão no caminho do progresso, razão pela qual não há problemas em violentar o povo e matar uma população, mesmo com as manobras retóricas que estamos vendo de partidos esquerdistas os quais, ainda que falem de direitos humanos, não querem ser igualados ao grande inimigo de sua ideologia, e só receberão os doentes para tratar as feridas, mas, sobre extinguir as causas delas parece que não é relevante tratar neste momento! Não adianta, escorpião sempre será escorpião!
O mais assustador é que, para esses outros cegos do castelo, talvez seja até melhor continuar viciados nesse exercício da brutalidade, já que, como se diz acerca de fala atribuída a Stalin, “uma morte é uma tragédia, milhares de mortes, uma estatística”. Convenhamos, essa lógica cai muito bem para todos os que acham legítimo usar da violência pela suposta causa igualitária, que é justa, razão pela qual tudo será perdoado. Mais uma leitura errada de Maquiavel!
Como tem sido ventilado na mídia, o mandatário chileno está sob pressão em seu país, seus projetos ou não podem ser impostos devido à aversão da sociedade, ou porque não tem força para aplicá-los, tendo de negociar com vários segmentos. Talvez, possa estar aprendendo a respeitar a oposição e isso venha a explicar sua atual repulsa a Ortega. Independentemente de qual seja a razão, vamos no elemento factual: com sua declaração, o Chile sai na frente, mais uma vez, podendo olhar em frente, mesmo que com um “ex-cego do castelo” na liderança, trazendo esperança de outro caminho, que, de certa forma, já estava sendo trilhado, e bastaria apenas corrigir algumas questões fundamentais para manter o crescimento da economia, garantir o desenvolvimento e conseguir a distribuição de renda, sem ser necessário que um castelo tingido de vermelho fosse criado ali no chile, hiperinflado de cômodos para alojar milhares de cegos a custa do povo.
Se a música de Nando Reis consegue expressar a esperança de um novo futuro, já que ele conseguiu fugir desse lugar medonho, ou seja, do vício, da droga que o consumia, aqui ampliamos a poesia para o caso da política latino-americana, e Boric, se realmente está entendendo o que é Daniel Ortega, poderá ter uma chance de sair dessa construção cor de sangue (não é à toa que tem essa cor), ocupado por cegos vestidos de vermelho e embriagados com o deleite da violência. Veremos se realmente terá força e coragem para sair “a pé, até encontrar, um caminho, o lugar, pro que (ele possa ser)”! Ele é jovem e tem tempo para aprender, esperamos que queira!