Os Estados Unidos vivem atualmente o mais longo shutdown federal de sua história, após completar 36 dias de paralisação parcial do governo e ultrapassar o shutdown registrado entre 2018 e 2019, que durou 35 dias. A crise orçamentária, provocada pelo impasse entre o presidente Donald Trump e o Congresso, já suspendeu o pagamento de centenas de milhares de servidores públicos, interrompeu serviços essenciais e ameaça o fornecimento de alimentos a milhões de americanos. O conflito ocorre após o vencimento das autorizações de gasto federal e reflete o agravamento da polarização política no país.
O presidente Trump tem resistido a negociar com líderes democratas e afirmou que os benefícios alimentares e programas federais de assistência só serão retomados quando os “radicais de esquerda” aceitarem um acordo para reabrir o governo. Enquanto isso, serviços públicos continuam paralisados e as agências federais operam com equipes reduzidas, afetando desde a segurança alimentar até o processamento de impostos e o funcionamento de parques nacionais.
O que é um shutdown e por que acontece?
Um shutdown ocorre quando o Congresso dos EUA não aprova a tempo o orçamento federal ou as chamadas continuing resolutions (CRs), que prorrogam o financiamento do governo. Pela legislação americana, o Executivo não pode gastar sem autorização legislativa. Quando o prazo expira, as agências federais devem suspender todas as atividades não essenciais e colocar servidores em licença não remunerada. Apenas serviços de segurança nacional, controle aéreo e saúde emergencial continuam em operação, com funcionários trabalhando temporariamente sem pagamento.
Desde a década de 1980, os shutdowns passaram a ser aplicados de forma mais rígida, após pareceres jurídicos determinarem que, sem verba aprovada, as agências devem encerrar operações. Essa característica é praticamente exclusiva do sistema político norte-americano, em que a separação de poderes impede o presidente de forçar a aprovação de gastos e o Congresso detém o controle sobre o orçamento.
Por que o impasse atual se prolonga tanto?
O atual shutdown é resultado direto da falta de acordo entre republicanos e democratas sobre a destinação dos recursos federais. O ponto central da disputa envolve o financiamento de programas sociais e o controle de gastos. Trump, pressionado por alas conservadoras do partido, se recusa a sancionar o orçamento sem cortes adicionais e acusa os democratas de paralisar o país por motivos políticos.
Enquanto isso, a oposição argumenta que a Casa Branca tenta impor um orçamento desequilibrado, que privilegia setores militares e reduz programas civis. A ausência de consenso entre as duas câmaras do Congresso, o Senado, de maioria republicana, e a Câmara, sob controle democrata, impede a aprovação de novas leis de financiamento, levando ao bloqueio orçamentário. Economistas alertam que cada semana de paralisação reduz o crescimento do PIB e compromete a confiança dos consumidores e investidores.
Os últimos shutdowns americanos
O último shutdown mais prolongado shutdown já registrado nos EUA ocorreu recentemente, entre 22 de dezembro de 2018 e 25 de janeiro de 2019, durante o primeiro mandato do governo Donald Trump. Foram 35 dias de paralisação parcial, superando todos os recordes anteriores. O impasse teve origem em uma acirrada disputa sobre o financiamento de um muro na fronteira com o México, promessa de campanha de Trump. O presidente exigia que o orçamento incluísse US$ 5,7 bilhões para a construção do muro, mas a oposição no Congresso se recusou a aprovar esses recursos. Sem acordo, expirou em 21 de dezembro o prazo de um CR que mantinha temporariamente os fundos de várias agências, iniciando o shutdown.
Trump, apoiado por aliados conservadores, insistiu que não sancionaria nenhuma lei orçamentária sem a verba do muro. Do outro lado, os democratas permaneciam inflexíveis contra o financiamento da barreira fronteiriça, que consideravam caro e ineficaz. O resultado foi um impasse prolongado: aproximadamente 800 mil funcionários federais ficaram sem pagamento, cerca de metade impedidos de trabalhar (licença forçada) e a outra metade trabalhando sem remuneração, em serviços essenciais. Entre os impactos:
- Parques nacionais foram fechados ou operaram com equipe mínima;
- museus e monumentos em Washington ficaram trancados;
- inspeções alimentares, processamento de reembolsos fiscais e outros serviços federais foram interrompidos ou atrasados.
A pressão pública crescia à medida que os efeitos se espalhavam. Estimativas do Congressional Budget Office (CBO) indicaram um prejuízo considerável à economia, bilhões de dólares em atividades produtivas deixaram de ocorrer durante o período. Diante do desgaste, o presidente Trump anunciou em 25 de janeiro um acordo temporário (sem o dinheiro do muro), para reabrir o governo por três semanas.
Esse acordo encerrou o shutdown mais longo da história. Posteriormente, em fevereiro, o impasse orçamentário foi resolvido por meio de uma lei de gastos que concedeu US$ 1,375 bilhão para barreiras na fronteira, bem abaixo do valor exigido inicialmente.
Outros shutdowns relevantes e seus contextos
Além de 2018-2019, outras paralisações governamentais marcantes ficaram registradas na história recente dos EUA. Abaixo, algumas das mais significativas, todas com duração de pelo menos vários dias.
1995-1996: Confronto de Clinton com o Congresso
Antes de 2019, o recorde de shutdown mais longo pertencia ao embate entre o presidente Bill Clinton e o Congresso dominado pelos republicanos em 1995-1996. Foram dois shutdowns consecutivos naquele ano fiscal, o segundo durando 21 dias (de 16 de dezembro de 1995 a 6 de janeiro de 1996). O confronto girou em torno do plano orçamentário da maioria republicana, liderada pelo então presidente da Câmara, Newt Gingrich, que propunha cortes profundos em programas sociais e outras medidas para equilibrar o orçamento em 7 anos, juntamente com reduções de impostos. Clinton vetou projetos de lei de despesas que, em sua visão, continham cortes “excessivos e inaceitáveis” nessas áreas. Em retaliação, o Congresso republicano se recusou a aprovar fundos temporários, provocando a paralisação como forma de pressionar o Presidente a ceder aos cortes.
Clinton, entretanto, manteve-se firme. Em pronunciamentos enfáticos, acusou os líderes do Congresso de “fechar o governo para forçar seu programa radical” e declarou que não aceitaria “deixar nossos filhos com um legado de negligência” em nome de austeridade fiscal. No primeiro shutdown dessa disputa (de 14 a 19 de novembro de 1995), cerca de 800 mil servidores foram dispensados do trabalho, fechando parques nacionais, museus, passaportes deixaram de ser emitidos, e serviços como coleta de lixo em Washington D.C. foram interrompidos. Uma trégua breve ocorreu, mas as divergências logo retornaram, levando ao segundo shutdown muito mais longo no Natal/Ano Novo de 95-96. Nessa segunda rodada, algumas agências já tinham orçamento aprovado, de modo que aproximadamente 280 mil funcionários foram afetados. Mesmo assim, o impacto foi amplo, turistas encontraram monumentos fechados durante as festas de fim de ano, pedidos de passaporte e benefícios atrasaram e contratos federais ficaram suspensos, prejudicando negócios locais.
Após três semanas de paralisação, a opinião pública majoritariamente culpou o Congresso pelo impasse, e os republicanos recuaram. Clinton emergiu politicamente fortalecido. Um acordo bipartidário foi enfim alcançado para reabrir o governo em janeiro de 1996, prevendo um orçamento mais moderado.
2013: Disputa pelo Obamacare
Em outubro de 2013, ocorreu um shutdown de 16 dias durante o governo do presidente Barack Obama, motivado por conflitos em torno da reforma do sistema de saúde conhecida como Obamacare. Na época, uma facção conservadora no Congresso, condicionou a aprovação do orçamento à revogação ou adiamento da Lei de Cuidados de Saúde Acessíveis (ACA), principal realização legislativa de Obama. Em 1º de outubro de 2013, sem acordo sobre o financiamento, o governo ficou sem verba no início do novo ano fiscal.
Obama e os democratas recusaram terminantemente quaisquer mudanças na lei de saúde via coerção orçamentária. Como resultado, a máquina pública entrou em pausa, aproximadamente 800 mil funcionários federais foram imediatamente colocados em licença não remunerada, no início da paralisação. Serviços federais considerados “não-essenciais” foram suspensos em todo o país. Parques nacionais fecharam suas portas, centros de pesquisa e agências reguladoras pararam suas atividades, e até tratamentos clínicos experimentais financiados pelo governo sofreram interrupção.
Do ponto de vista político, o então presidente adotou uma postura firme. “Os republicanos na Câmara dos Representantes escolheram fechar o governo por causa de uma lei de saúde de que não gostam”, declarou Obama em rede nacional durante a crise. A pressão da opinião pública rapidamente se voltou contra o Congresso. Com as pesquisas indicando que a maioria dos norte-americanos desaprovava usar o fechamento do governo como tática contra o Obamacare, alguns republicanos moderados se juntaram aos democratas para aprovar uma lei orçamentária temporária sem exigir mudanças na saúde. Em 17 de outubro de 2013, o impasse chegou ao fim com a reabertura do governo, sem concessões significativas quanto ao Obamacare, que permaneceu intacto.
Por que só os EUA?
Uma pergunta frequente é por que apenas os EUA parecem sofrer com shutdowns. A resposta está nas particularidades do sistema político americano, nos EUA vigora a separação rígida de poderes. O presidente não pode demitir o Congresso nem forçar a aprovação de leis orçamentárias; ao mesmo tempo, o Congresso detém exclusivamente o “poder da bolsa”, decidindo sobre todos os gastos. Se Executivo e Legislativo não chegam a um acordo, não há uma solução automática: o impasse persiste e o financiamento cessa. Além disso, os EUA não possuem por padrão um orçamento plurianual ou autorizações de gastos continuadas, o financiamento é anual e deve ser renovado a cada ano fiscal (ou estendido via CRs). Em muitos outros países, mesmo na ausência de novo orçamento, mecanismos legais asseguram a continuidade temporária da despesa no nível anterior. Nos EUA, porém, a lei proíbe gastar sem aprovação, e após as interpretações de 1980, essa proibição passou a ser levada ao pé da letra.
Em suma, os shutdowns são um produto das checks and balances (freios e contrapesos) da democracia americana, aliados à polarização política. Eles representam momentos em que esses contrapesos entram em choque a ponto de paralisar a máquina pública. Como vimos, tais situações já ocorreram tanto sob governos republicanos quanto democratas, e por motivos variados, mas sempre carregando lições de cautela. Cada shutdown reforça, para políticos e eleitores, os limites de usar a paralisação como tática, a pressão popular contra o impasse tende a crescer exponencialmente a cada dia sem serviços, tornando a estratégia politicamente arriscada.