O Brasil está no meio de uma transformação silenciosa. Nos últimos cinco anos, as criptomoedas deixaram de ser uma curiosidade marginal para se consolidarem como uma presença estrutural no cotidiano financeiro de milhões de brasileiros. O avanço da tokenização de ativos, a consolidação das stablecoins e a integração com o sistema bancário tradicional moldam uma nova arquitetura financeira onde o blockchain é tanto instrumento quanto linguagem.
Dados da Receita Federal mostram que, entre janeiro e setembro de 2024, foram registrados R$ 247,8 bilhões em transações com criptomoedas, um crescimento de 24% em relação ao mesmo período de 2023. Segundo a CoinLedger, cerca de 16 milhões de brasileiros, o equivalente a 7,8% da população, já detêm algum criptoativo. Pesquisa da Datafolha revela que 54% da população conhece o bitcoin, e 16% já investiram nele.
Esses números não surpreendem. Em um país historicamente afetado por inflações crônicas, desvalorização cambial e crises bancárias, a busca por alternativas é parte da cultura de sobrevivência financeira. Se antes o refúgio era o dólar na conta do exterior ou o ouro na gaveta, hoje é o USDT na carteira digital. O dado mais significativo: 62% de todas as transações cripto no Brasil em 2024 foram com USDT (Tether), uma stablecoin pareada ao dólar. Sua função é prática e simbólica: representa o real invisível, a moeda de fuga que protege o poder de compra diante das flutuações cambiais. Em 2025, cada vez mais brasileiros estão usando stablecoins não para especular, mas para manter liquidez fora do sistema bancário e para pagar contas em ecossistemas paralelos.
Resposta institucional e regulamentação em construção
O Banco Central não ignora esse fenômeno. Em abril deste ano, a instituição incluiu as stablecoins como prioridade regulatória. Está em discussão um marco legal que classifique essas moedas como instrumentos financeiros equiparáveis a títulos privados. Desde dezembro de 2022, está em vigor a Lei 14.478, que define serviços de ativos virtuais, como corretoras, carteiras digitais e prestadores de exchange. O Banco Central e a CVM instauraram medidas de segurança, registro, supervisão e prevenção à lavagem de dinheiro. Em 2025, o BC lançou consultas públicas para definir regras específicas para prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs) e stablecoins. Entre os pontos discutidos estão capital mínimo, normas de compliance, KYC, rastreabilidade e exigências para operações internacionais. Transações acima de R$ 5 mil para pessoas físicas ou R$ 15 mil para empresas são agora automaticamente comunicadas à Receita.
Integração com o mercado financeiro tradicional
O ecossistema amadureceu. Se em 2020 os brasileiros operavam em exchanges globais, hoje o mercado nacional possui infraestrutura própria. Plataformas como Mercado Bitcoin, BitPreço e Foxbit lideram em volume e inovação. O BTG Pactual e o Itaú criaram divisões de custódia e tokenização. Fundos como Hashdex se tornaram referência global. A integração com o sistema financeiro tradicional é crescente. Hoje, é possível operar criptoativos diretamente pelo home broker de bancos, e carteiras digitais já permitem transferências blockchain com integração ao Pix. A tokenização de recebíveis, créditos de carbono e ativos públicos já é realidade em ao menos três instituições bancárias.
Iniciativas do Estado: Drex e RESBit
Duas iniciativas indicam que o Estado não apenas regula, mas deseja participar. A primeira é a proposta de criação da RESBit, uma reserva internacional parcial em bitcoin. A ideia, em tramitação no Congresso, é alocar até 5% das reservas cambiais em criptoativos, com gestão do Banco Central. A justificativa é técnica: diversificar risco sistêmico e acompanhar tendências do G20. A segunda é o Drex, a versão digital do real, hoje em fase de testes-piloto. Previsto para lançamento em 2025, o Drex não é uma criptomoeda, mas adota a mesma infraestrutura distribuída. Sua missão é facilitar liquidação atômica de títulos e simplificar o acesso a serviços financeiros com menor intermediação. A coexistência entre Drex e stablecoins definirá os limites entre centralização monetária e descentralização financeira.
Casos locais e riscos emergentes
O Brasil também testa experiências locais. Rolante (RS), Jericoacoara (CE) e Santo Antônio do Pinhal (SP) implantaram projetos de pagamentos locais com bitcoin via Lightning Network. Em Rolante, mais de 200 comércios aceitam pagamentos com carteira digital, sem passar por bancos. São pilotos de uma economia circular digital, com potencial para inspirar políticas públicas.
Como todo processo em transição, há riscos. O crescimento de stablecoins fora do sistema bancário levanta preocupações sobre lavagem de dinheiro, evasão fiscal e shadow banking. O Banco Central apontou aumento de transações irregulares em USDT e está mapeando protocolos DeFi com presença no país. Ao mesmo tempo, parte da elite financeira ainda considera o cripto como aposta de risco ou moda passageira. Mas os dados são persistentes. O valor transacionado em cripto em 2024 superou o volume da B3 em operações de varejo.
Uma arquitetura híbrida em formação
Em vez de ruptura, o que se observa é uma acomodação. O blockchain no Brasil não substituiu a moeda fiduciária, mas passou a conviver com ela. Está nas cidades pequenas e nas carteiras institucionais. Serve ao investidor, ao comerciante e ao programador. A regulação avança, as infraestruturas se fundem e a lógica da tokenização ganha vocabulário cotidiano. A próxima etapa não será ideológica, mas tecnocrática: como criar um sistema híbrido que proteja o consumidor, estimule a inovação e preserve a estabilidade macroeconômica.
A criptoeconomia brasileira deixou de ser uma narrativa especulativa. É agora uma ferramenta em expansão, com o potencial de redesenhar a interação entre cidadão, moeda e Estado. Uma revolução silenciosa, mas com efeitos profundos, já em curso.
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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