
Em 16 de junho de 1858, na cidade norte-americana de Springfield, no estado de Illinois, ocorreu a Convenção Estadual Republicana. Mais de mil delegados estavam reunidos e, às 17h00, escolheram Abraham Lincoln como candidato ao Senado dos Estados Unidos contra o Democrata Stephen A. Douglas. Na ocasião, Lincoln fez um de seus mais veementes discursos sobre o câncer da escravidão e a divisão que a questão racial estava a gerar no país. Inspirado por uma passagem bíblica, Lincoln usou um conceito familiar registrado nos três evangelhos sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas – ao afirmar que “uma casa dividida não subsistirá!” Com isto, Lincoln pretendia incentivar uma reflexão aprofundada sobre a vulnerabilidade de um país quando seu povo está dividido, entre escravos e livres. O resultado foi que a polarização levou o país anos depois a uma guerra civil sangrenta que atingiu profundamente – e ainda impacta – o tecido social norte-americano.
Atualmente, o debate político é outro. O câncer da escravidão foi parcialmente derrotado – embora ainda persistam algumas práticas preocupantes aqui e ali – mas o fato é que surgiram outros que dividem as sociedades cada vez mais.
Em pesquisa recente, feita pelo YouGov e o The Economist, mais de dois quintos dos norte-americanos acreditam que, de alguma forma, poderia ocorrer uma nova guerra civil no país nos próximos dez anos. Noutras pesquisas, os números também são semelhantes. A divisão causada pelo último pleito eleitoral tampouco distensionou o país. Joe Biden, que prometeu conciliação e um governo inclusivo, tem-se revelado incapaz de reduzir a polarização. De fato, sua atuação política tem fraturado ainda mais um país que não se esqueceu do fatídico 6 de janeiro de 2020, quando manifestantes invadiram o Capitólio.
É improvável que os Estados Unidos enfrentem uma nova guerra civil. No entanto, a divisão e a violência política deverão fragmentar ainda mais a população, com um provável enfraquecimento das instituições do país. Impressiona, no entanto, que na pesquisa 43% dos norte-americanos afirmem que uma guerra civil poderia ocorrer: na média 40% dos Democratas e Independentes e 54% dos Republicanos. São números preocupantes para o país que, por décadas, serviu como modelo e inspiração democrática global.
O fato é que polarização política sempre existiu. Afinal, onde há um problema ou situação que revele a necessidade do estabelecimento de uma política pública, sempre haverá opiniões concorrentes e divergentes. O debate entre os divergentes enriquece a qualidade das decisões. O desafio, no entanto, reside na aceitação de que, encerrado o debate, uma oposição responsável e construtiva deve lutar para a melhoria na qualidade das políticas públicas a serem implantadas e não simplesmente o mero boicote retaliatório. Além disso, a oposição deveria aproveitar o tempo para a elaboração de um projeto alternativo a ser apresentado ao eleitorado num próximo pleito.
O relógio eleitoral das democracias é uma benção e uma maldição. É benção porque permite a reeleição ou o cartão vermelho ao político eleito. É maldição porque, com o prazo dos mandatos, o debate infindável e a oposição destrutiva não permitem a implantação de políticas efetivas de longo prazo. Por isto, a polarização é daninha. As palavras de Lincoln são mais atuais que nunca.
*Marcus Vinícius De Freitas, professor visitante, China Foreign Affairs University. Senior Fellow, Policy Center for the New South