Quando o governo militar começou a ensaiar uma abertura política, surgiu um fenômeno visto com reservas por boa parte da sociedade brasileira: a esquerda festiva, ativistas que faziam muito barulho e tinham pouca consistência ideológica. Nos dias atuais, porém, fala-se em outro tipo de militância: a esquerda caviar, composta por pessoas que têm ideais alinhados com o progressismo, mas vivem em situação de extremo conforto (muitas vezes proporcionado pela família). Um exemplo disso é a personagem Shiv Roy, da série “Sucession” (imagem).
Um artigo publicado ontem na “Folha de S. Paulo”, de autoria da socióloga Maria Hermínia Tavares, trata sobre um tema correlato. A professora da USP refere-se a um estudo feito pela ONG More in Common, que aponta o seguinte: “Os ‘progressistas militantes’ são mais ricos, mais educados, mais brancos e menos religiosos do que todos os situados nos outros grupos. De forma atenuada, a ‘esquerda tradicional’ apresenta características aparentadas. Somados, os dois grupos não chegam a 20% da população e dela se diferenciam pela renda, nível educacional e cor da pele”.
Esse estudo tem como título “O papel dos invisíveis na divisão política do Brasil” e mostra que a polarização entre petistas e bolsonaristas representa menos de 40% da sociedade brasileira. Os outros 60% — a maioria — são os “invisíveis”: brasileiros que não se veem representados por nenhum dos lados e que, apesar de influenciar silenciosamente os rumos do país, são sistematicamente ignorados no debate público.
A pesquisa, baseada em mais de 10.000 entrevistas, revela que os segmentos mais atuantes da esquerda no Brasil apresentam um perfil socioeconômico e racial distinto da média nacional. Cerca de 53% de seus integrantes possuem ensino superior completo, um percentual significativamente superior ao da população em geral (20,5% do total). Além disso, aproximadamente 37% desses grupos têm renda mensal superior a R$ 10.000,00, o que coloca esses indivíduos entre os 10% mais ricos do país (a média nacional é pouco superior aos R$ 3.000,00 mensais). No aspecto racial, 57% dos membros desses grupos se declaram brancos, índice também acima da estatística divulgada pelo IBGE (43,5%).
Maria Hermínia usa um conceito do economista Thomas Piketty, um autor não muito bem-visto entre os intelectuais de direita, para mostrar que esta dinâmica é global. O francês cunhou o termo “esquerda brâmane” para explicar esse fenômeno, uma referência ao sistema de castas da Índia. Neste país, os brâmanes correspondem à casta sacerdotal e intelectual, tradicionalmente formada por professores, literatos e clérigos.
Piketty usa a expressão para descrever o atual perfil dos partidos de esquerda, que passaram a ter como principal base eleitoral pessoas altamente escolarizadas e intelectuais, em oposição às classes trabalhadoras tradicionais que antes eram o núcleo deste movimento.
No mundo atual, a ideologia parece se descolar das classes sociais em determinados segmentos da população. Assim como temos os esquerdistas caviar, existem também os “pobres de direita”, achincalhados pelos chamados progressistas. Muitas vezes, inclusive, esses críticos são aqueles que defendem o PT mas moram no bairro paulistano dos Jardins. Ou são partidários do socialismo ao mesmo tempo que possuem o mais moderno modelo de iPhone disponível na praça.
Diante desse cenário, emerge uma pergunta incômoda: quem realmente representa o Brasil? A política nacional parece cada vez mais refém de bolhas ideológicas que ignoram a complexidade do país real, aquele que não se reconhece nas trincheiras da polarização. A esquerda brâmane e a direita caricata são apenas faces de uma elite que disputa narrativas, enquanto os invisíveis seguem à margem. Talvez o verdadeiro desafio esteja em construir pontes entre discurso e prática. Como mostra o estudo citado acima, o Brasil de verdade está muito descolado dos estereótipos que parecem dominar a narrativa que rege nossas vidas.