Menos de 24 horas após anunciar a composição de seu gabinete, o primeiro-ministro da França, Sébastien Lecornu renunciou nesta segunda-feira (6). A decisão, aceita imediatamente pelo presidente Emmanuel Macron, transformou o mais recente governo francês no mais curto da história recente do país. Lecornu havia sido nomeado em 10 de setembro, tornando-se o quinto premiê em apenas dois mandatos de Macron, e o terceiro a cair em menos de um ano.
A renúncia encerra mais uma tentativa frustrada de Macron de estabilizar uma coalizão política fragmentada desde a snap election de 2024, a eleição legislativa antecipada convocada pelo próprio presidente na tentativa de retomar o controle do Parlamento. Desde então, a França vive uma paralisia institucional que impede o avanço de qualquer reforma relevante, tanto na esfera econômica quanto social.
As razões da queda: política e orçamento em colapso na França
Lecornu anunciou, na noite de domingo (5), um gabinete que buscava sinalizar continuidade administrativa e equilíbrio político. No entanto, a escolha de Bruno Le Maire, ex-ministro das Finanças, para o Ministério da Defesa desencadeou uma reação imediata entre os conservadores do partido Republicanos (LR), aliados de Macron desde 2024. Para o LR, Le Maire é um “desertor” que abandonou a legenda em 2017 para integrar o primeiro governo macronista.
O retorno de Le Maire foi visto não apenas como um gesto de provocação, mas como a repetição de uma fórmula rejeitada por grande parte da base conservadora: a manutenção de uma equipe associada ao aumento da dívida pública e à política orçamentária que elevou o endividamento francês para 115% do PIB. “Não se pode ser primeiro-ministro quando não existem as condições para governar”, declarou Lecornu em sua despedida.
Além da nomeação de Le Maire, o desequilíbrio na distribuição de pastas ministeriais, dez para o partido de Macron, contra apenas quatro para os Republicanos e a ausência de propostas mais duras contra a imigração ilegal ampliaram o descontentamento dentro da coalizão. O líder do LR, Bruno Retailleau, chegou a convocar uma reunião de emergência logo após o anúncio, afirmando que a composição “não refletia a ruptura prometida”.
Oposição unida e parlamento dividido
O desgaste interno foi acompanhado por um cerco da oposição. A ultradireita do Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, classificou a escolha de ministros como “uma afronta ao eleitorado francês” e pediu a dissolução imediata da Assembleia Nacional. A esquerda, liderada pela França Insubmissa (LFI) e pelos Verdes, anunciou apoio a uma moção de censura contra o governo. Já os socialistas acusaram o presidente de mergulhar o país “em um ciclo de caos e paralisia”.
O problema central, no entanto, é estrutural. Desde as eleições de 2024, a França vive sob um parlamento tripartido e profundamente dividido: a aliança de esquerda soma cerca de 150 cadeiras, o bloco de centro (macronistas e aliados) tem 210, e a ultradireita, mais de 170. Nenhum grupo alcança a maioria absoluta de 289 assentos, o que torna inviável a aprovação de qualquer projeto significativo, inclusive o orçamento.
Essa configuração reflete o que o economista Igor Lucena define como um “deadlock político”, um impasse em que “nenhum lado é capaz de governar e nenhum quer ceder o poder”. Segundo ele, “desde a eleição antecipada de 2024, a França ficou aprisionada em um parlamento que não reflete mais uma maioria funcional. São três blocos, esquerda, centro e extrema-direita, que discordam em absolutamente tudo, e isso torna qualquer governo inviável”.
Crise fiscal na França agrava o impasse político
A crise política francesa não pode ser dissociada da crise fiscal. A dívida pública já ultrapassa 3,3 trilhões de euros, e o país ostenta o maior déficit da zona do euro. Essa pressão por cortes orçamentários foi o estopim para a queda sucessiva de três governos:
- Michel Barnier — destituído em dezembro de 2024, após o parlamento rejeitar um plano de cortes para o orçamento de 2025;
- François Bayrou — derrubado em setembro de 2025, ao propor um ajuste de 44 bilhões de euros para o orçamento de 2026;
- Sébastien Lecornu — renunciou antes mesmo de apresentar o plano de 2026, ao perceber que não teria apoio suficiente.
Para Igor Lucena, o problema é que “a França tem um déficit que exige reformas profundas, mas cada bloco político propõe uma saída oposta: a esquerda defende aumento de gastos sociais, o centro quer austeridade gradual, e a direita exige cortes mais duros e controle da imigração. Essa incompatibilidade torna o país ingovernável”.
Macron diante do impasse: dissolver, resistir ou arriscar?
Sem um governo e sem maioria parlamentar, Macron tem diante de si três caminhos, todos arriscados:
- Nomear um novo primeiro-ministro — uma opção temporária, mas de eficácia limitada. Lucena avalia que “qualquer novo premiê que assuma agora vai enfrentar a mesma paralisia, e provavelmente cairá ainda mais rápido”.
- Dissolver o Parlamento — o cenário mais provável, mas também o mais perigoso. Novas eleições podem reforçar o domínio da extrema-direita de Marine Le Pen e do líder Jordan Bardella.
- Renunciar ao cargo — hipótese defendida por opositores, mas reiteradamente descartada pelo presidente. “Macron não deve renunciar. Ele vai até 2027, mas com cada vez menos poder político”, disse Lucena.
O peso da sucessão de 2027
Outro fator que agrava a crise é a corrida presidencial de 2027. Macron está impedido de concorrer a um terceiro mandato, e todos os grandes partidos já se movem para posicionar seus candidatos. Essa disputa antecipada reduz a disposição para acordos no parlamento e aumenta a radicalização política.
Embora Marine Le Pen esteja temporariamente impedida de disputar eleições por decisão judicial, seu partido continua crescendo e é apontado pelas pesquisas como o mais forte em uma eventual nova legislatura. “Convocar novas eleições agora pode acelerar a chegada da extrema-direita ao poder, e é por isso que Macron hesita”, alerta o economista.
França vive uma crise de sistema
Ao final, a queda do governo Lecornu não é apenas o colapso de mais um gabinete, mas o sintoma de um sistema político exaurido. A divisão tripartite do parlamento francês, somada à rigidez institucional e ao peso da dívida pública, criou um bloqueio que impede qualquer avanço. Com o país sem governo funcional, com o orçamento travado e com a credibilidade em xeque, o futuro político da França está nas mãos de um presidente que ainda tenta evitar a dissolução do parlamento, mas que vê sua margem de manobra diminuir a cada semana. A Europa observa atenta e preocupada.