O recente reconhecimento da Palestina como Estado soberano por Austrália, Canadá, França, Portugal e Reino Unido representa mais do que um gesto diplomático isolado. Trata-se de um movimento carregado de simbolismo político, mas que também expõe a fragilidade do consenso ocidental em torno de Israel e revela a inevitável transformação da ordem internacional. O que antes parecia inabalável — o apoio quase automático do Ocidente a Israel — começa a ruir diante de pressões internas, mudanças geracionais e do crescente peso da opinião pública global.
O reconhecimento da Palestina não decorre de uma neutralidade prévia, mas de um deslocamento estratégico que rompe com décadas de hesitação e com a crença de que o reconhecimento só poderia ocorrer após negociações diretas entre as partes. Esse gesto não se explica apenas por convicções morais ou humanitárias — ainda que as imagens de Gaza e a percepção global de um genocídio em curso tenham sido decisivas. Ele se inscreve igualmente no plano da política doméstica: líderes pressionados por índices de popularidade em declínio veem na decisão uma oportunidade de reconexão com uma juventude cada vez mais distante das narrativas tradicionais de segurança de Israel. Pesquisas recentes demonstram que os jovens, sobretudo no Ocidente, identificam-se de forma mais clara com a causa palestina, enquanto percebem Israel como uma potência ocupante e desproporcional em suas ações militares. Nesse contexto, a política externa converte-se em instrumento de sobrevivência política interna.
O reconhecimento responde também a uma mudança de sensibilidade no debate público global. Já não é possível sustentar a assimetria entre a retórica de defesa dos direitos humanos e a complacência diante das ações israelenses. Ao reconhecer a Palestina, esses países afirmam que não podem mais manter a narrativa de neutralidade quando as evidências de violações se acumulam. É uma correção tardia, mas significativa, que pressiona Israel a repensar sua estratégia e sinaliza que a cumplicidade ocidental não é mais garantida.
Do ponto de vista internacional, o gesto carrega implicações profundas. Ele fortalece a legitimidade palestina em organismos multilaterais, amplia sua margem de ação diplomática e aumenta a pressão sobre outros países europeus e latino-americanos para seguirem a mesma posição. Para Israel, representa um revés simbólico de peso: a convicção de que seus aliados mais próximos jamais romperiam o consenso pró-Israel já não se sustenta. Ainda que os vínculos militares e de inteligência permaneçam sólidos, a confiança no apoio político incondicional foi abalada. Apesar da solidariedade internacional diante dos crimes execráveis cometidos pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, a resposta violenta, desproporcional e desumana do governo de Benjamin Netanyahu destruiu um dos principais legados históricos de Israel: a credibilidade moral conquistada após o Holocausto, que a tornara referência na defesa global dos direitos humanos.
É importante, no entanto, não superestimar os efeitos imediatos. O reconhecimento não altera a realidade no terreno: Gaza permanece devastada, a Cisjordânia fragmentada e o processo de paz, inexistente. Mas, no plano discursivo e diplomático, cria-se uma fissura que pode se ampliar. Uma vez quebrado o tabu, outros países poderão sentir-se encorajados a adotar a mesma posição, redesenhando o mapa de apoios internacionais.
O episódio deve ser lido no contexto mais amplo da multipolaridade em ascensão. O Ocidente, dividido, já não dita sozinho os parâmetros da legitimidade internacional. As escolhas destes países que agora reconhecem a Palestina refletem igualmente a percepção de que a credibilidade do sistema internacional exige coerência: não é mais sustentável condenar violações em alguns lugares enquanto se fecham os olhos para outras, quando a juventude global exige consistência ética.
Em síntese, o reconhecimento da Palestina por esses países não é apenas um gesto simbólico, mas o indício de uma inflexão histórica. Ele traduz o desgaste da narrativa ocidental pró-Israel, responde à pressão interna de sociedades cada vez mais críticas e conecta-se ao movimento mais amplo de redistribuição de poder no cenário internacional. A Palestina, ainda que enfrente desafios imensos, ganha um trunfo político inédito. Israel, por sua vez, confronta-se com uma realidade incômoda: a era do apoio automático pode ter terminado. E Netanyahu ficará marcado pela história como a grande mácula da credibilidade moral israelense.