O debate sobre o Pacto Federativo volta ao centro da agenda porque é nos municípios que a vida acontece, saúde, educação, transporte, iluminação, zeladoria e, cada vez mais, tecnologia de serviços ao cidadão. No BM&C Talks, Fred Guidoni, presidente da Associação Paulista de Municípios (APM), defendeu que a distribuição de receitas não acompanha as atribuições transferidas às prefeituras desde a Constituição de 1988. Nesse sentido, a base da federação opera com “cobertor curto”: mais responsabilidades, mas recursos insuficientes para executá-las com qualidade.
Guidoni resumiu a missão do movimento municipalista: reequilibrar a partilha do bolo tributário entre União, estados e cidades. Por outro lado, ele destacou que não se trata de criar novos impostos locais, e sim de garantir que a arrecadação retorne à ponta onde o serviço é prestado. Enquanto isso, prefeitos seguem recorrendo a emendas e convênios pontuais para investimentos, solução que ajuda no curto prazo, mas não resolve o problema estrutural do financiamento das políticas públicas municipais.
Quais são os principais gargalos hoje para os municípios?
De acordo com Guidoni, a municipalização de políticas, como educação infantil e fundamental, trânsito e, em discussão, segurança pública, elevou o custo fixo das cidades. Na média, cerca de metade da receita de uma prefeitura vai para a folha de pagamento; o restante sustenta educação e saúde, sobrando pouco espaço para investimento. Além disso, a repartição atual, segundo ele, deixa “em torno de 17% a 20%” do que se produz de volta às cidades paulistas, descolando-se das necessidades locais.
Nesse contexto, a APM e a Confederação Nacional de Municípios defendem a aprovação da PEC 25, que adiciona 1,5 ponto percentual ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM). A estimativa citada pelo dirigente é de incremento de aproximadamente R$ 10 bilhões anuais aos cofres municipais, perto de R$ 2 bilhões ao Estado de São Paulo, alívio que permitiria enfrentar demandas prioritárias como saúde, educação e mobilidade.
Reforma tributária: o que muda para os municípios?
Guidoni avalia como positiva a implementação do sistema dual de IVA, CBS (União) e IBS (estados e municípios), por modernizar a arrecadação, reduzir evasão e redistribuir receitas com critérios objetivos (população, resultados em saúde e educação, e méritos). Enquanto isso, a transição será gradual, a partir de 2026, entram as alíquotas-teste (IBS de 0,1% e CBS de 0,9%) e, até 2032/2033, os dois regimes convivem, até a completa migração para o modelo sobre consumo.
Por outro lado, cresce a preocupação com a governança do novo sistema. Um comitê gestor central, com 54 membros, 27 dos estados e 27 representando os 5.570 municípios, administrará um volume bilionário de receitas. A APM defende que a representação municipal seja técnica, plural (pequenos, médios e grandes), transparente e auditável, para evitar decisões assimétricas que prejudiquem a base.
Pisos salariais e “quem paga a conta”
Outro ponto sensível são os mais de 200 projetos de pisos salariais em discussão no Congresso. A posição municipalista, conforme Guidoni, não é contrária ao piso em si, categorias como professores e enfermeiros merecem valorização, mas sim à criação de despesas permanentes sem indicação de fonte. Sem a contrapartida financeira explícita e automática da União, o impacto agregado pode superar dezenas de bilhões anuais, comprimindo ainda mais o espaço fiscal local.
Além disso, a legislação recente que impede a União e estados de criarem programas repassando custos aos municípios é vista como avanço. Ainda assim, a execução depende de previsões orçamentárias realistas, sob pena de empurrar as prefeituras ao déficit ou ao cancelamento de serviços essenciais.
Como ampliar a eficiência sem aumentar tributos?
Enquanto aguarda ajustes federativos, Guidoni recomenda atacar o lado da eficiência. Concessões e parcerias público-privadas (PPPs) têm entregado bons resultados em saneamento, iluminação pública e resíduos sólidos, desonerando o caixa municipal e acelerando a entrega. Nesse sentido, a APM criou o “APM Soluções”, um repositório de boas práticas replicáveis: padronização de projetos de iluminação LED com câmeras e conectividade, por exemplo, reduz custo, melhora a segurança e permite integração com serviços digitais.
Do mesmo modo, a digitalização do atendimento (apps para marcação de consultas, emissão de certidões e acompanhamento de protocolos) corta filas e despesas administrativas, além de aumentar o controle e a transparência. Por outro lado, a transição exige capacitação técnica e investimentos em sistemas, motivo pelo qual a troca de experiências entre municípios é vital para reduzir assimetrias.
Segurança pública deve ser municipalizada?
A discussão sobre criar “polícia municipal” reaparece em momentos de alta preocupação com a violência. Guidoni lembra que, pela Constituição, a segurança é dever do estado (polícias militar e civil) e da União (polícia federal). Guardas municipais podem harmonizar esforços, mas a pergunta central permanece: com que recursos e quais impactos de substituição haveria nas polícias estaduais? Em outras palavras, sem financiamento estável e desenho institucional claro, uma municipalização ampla tende a sobrecarregar ainda mais os orçamentos locais.
Guidoni reconhece a existência de casos de corrupção em licitações e desvios, defendendo remédios simultâneos: eleições de gestores comprometidos com governança, atuação dos órgãos de controle (TCEs, MP, câmaras municipais), portais de transparência e auditorias internas. Enquanto isso, ele enfatiza o papel do cidadão: orçamentos participativos, presença em sessões legislativas locais e fiscalização cotidiana ajudam a elevar o padrão de gasto e a exigir resultados.
Além da reforma tributária, Guidoni cita mudanças como a EC 136 (antiga PEC 66), que ajustou regras de precatórios e atrelou sua atualização ao IPCA, reduzindo o custo financeiro de passivos e liberando espaço para investimento. Ainda que tais medidas tragam fôlego, 54% dos municípios fecharam 2024 no vermelho, segundo o dirigente, reforçando o diagnóstico: sem reequilíbrio duradouro da receita, a base seguirá vulnerável a choques e a ciclos de “corta-gasto emergencial” no fim do ano.
O que está na mesa e o que vem pela frente?
- PEC 25 (FPM +1,5 p.p.): mais previsibilidade para financiar políticas essenciais.
- IVA dual (CBS/IBS): transição a partir de 2026; convivência de regimes até 2032/2033.
- Comitê gestor do IBS: 54 membros; defesa de representação técnica e equilibrada dos municípios.
- Pisos salariais: apoio com contrapartida definida; sem “mandatos” sem fonte de custeio.
- PPPs e digitalização: ganho de eficiência, transparência e redução de custos operacionais.
Municípios fortes, federação sustentável
Se “país forte” depende de “cidades fortes”, como diz Guidoni, o caminho combina três frentes:
- (i) governança e produtividade do gasto (PPPs, digital, compras públicas),
- (ii) previsibilidade de receitas (reforma tributária, fortalecimento do FPM)
- (iii) responsabilidade na criação de despesas (piso com fonte, programas com contrapartida).
Além disso, participação social e controle externo fortalecem a confiança. Em última análise, reequilibrar o Pacto Federativo não é agenda corporativa; é condição para que o serviço chegue onde o contribuinte vive, no município, com qualidade, transparência e sustentabilidade fiscal.