O presidente da República Italiana, Sergio Mattarella, reconhecido por sua sabedoria e rigor moral, fez um alerta contundente em seu vídeo-intervento no Fórum de Cernobbio. Comparou o poder crescente das Big Tech às antigas Companhias das Índias, lembrando que a concentração excessiva sempre traz riscos para sociedades e Estados. O encontro, oficialmente chamado de Fórum Ambrosetti, reuniu líderes globais da política, da economia e da academia. Ao lado de presidentes, ministros e CEOs, Mattarella destacou a necessidade de limites éticos e regulatórios. Sua fala ressoou como um convite à reflexão sobre o impacto civilizacional da tecnologia, uma mensagem que transcende fronteiras e interpela cada um de nós, cidadãos do mundo.
Nos séculos XVI e XVII, a Europa projetava sua força pelo mundo através das Companhias das Índias, empresas privadas dotadas de poderes quase soberanos. Cunhavam moeda, mantinham exércitos, negociavam tratados e controlavam territórios inteiros. A VOC (Companhia Holandesa das Índias Orientais) e a Companhia Inglesa das Índias Orientais simbolizam esse fenômeno: conectaram continentes, expandiram o comércio e ajudaram a erguer o capitalismo global, mas também monopolizaram rotas, devastaram economias locais e subjugaram povos. O legado é ambíguo, progresso e violência, riqueza e exploração, e prova que quem controla fluxos, de mercadorias ou capitais, controla sociedades.
Séculos depois, os galeões foram substituídos por dados, algoritmos e plataformas. Google, Apple, Microsoft, Amazon e Meta se tornaram superpotências privadas, definindo padrões de consumo, informação e comunicação. O Google domina buscas e publicidade; a Amazon centraliza comércio eletrônico e computação em nuvem; a Apple dita hardware e software usados por bilhões; a Meta conecta metade da humanidade; e a Microsoft fornece a espinha dorsal digital de empresas e governos. Não são apenas companhias: são gatekeepers globais, controlando os portais pelos quais passam nossas transações, identidades e narrativas. Assim como as Companhias das Índias, trouxeram avanços inegáveis, democratização da informação, aceleração científica e novos mercados, mas também riscos conhecidos: monopólios sufocam concorrentes, dados substituem especiarias como recurso a ser explorado, lobbies moldam legislações e algoritmos colonizam mentes. Se as companhias coloniais impunham bandeiras e canhões, as Big Tech impõem códigos e interfaces. O território colonizado é agora invisível, mas ainda mais penetrante: o espaço mental e social.
O colonialismo clássico controlava rotas marítimas; o digital controla rotas algorítmicas. O físico extraía riquezas materiais; o digital extrai tempo, atenção e comportamento. Ambos criam dependência e desafiam Estados. Reguladores tentam reagir: a União Europeia criou o GDPR e o Digital Markets Act, a China ergueu sua muralha digital, os EUA debatem práticas anticompetitivas. Mas a força econômica e cultural das Big Tech já supera muitas vezes a capacidade regulatória nacional. A dimensão numérica ilustra o poder: a soma da capitalização de Apple, Microsoft, Google, Amazon e Meta ultrapassa US$ 12,3 trilhões, o que equivale a 5,6 vezes o PIB do Brasil (US$ 2,18 tri), 5,2 vezes o da Itália (US$ 2,37 tri), 2,6 vezes o da Alemanha (US$ 4,66 tri) e mais da metade do PIB da União Europeia (cerca de US$ 20 tri). Além disso, as reservas de caixa dessas empresas somam entre US$ 400 e 530 bilhões, algo equivalente a 20–25% do PIB brasileiro, liquidez capaz de financiar, sozinha, programas nacionais inteiros ou resgatar economias em crise.
A história ensina que monopólios globais, quando não contidos, corroem a base do próprio sistema. As Companhias das Índias sufocaram concorrentes, geraram instabilidade e provocaram revoltas. Hoje, o risco é repetir, em chave digital, a mesma lógica predatória. O colonialismo mercantil subjulgou povos; o digital ameaça subjugar consciências. O inimigo não é a tecnologia, mas o poder concentrado sem contrapesos. As Big Tech, como as Companhias das Índias, são símbolos de uma globalização que tanto integra quanto domina. Ou aprendemos com o passado e criamos regras globais capazes de limitar esses impérios digitais, ou veremos repetir-se, em código binário, os mesmos erros mercantilistas.
No século XVII, quem controlava rotas marítimas dominava o mundo. No século XXI, quem controla fluxos digitais decide o que vemos, pensamos e consumimos. A questão não é se as Big Tech são as novas Companhias das Índias. A questão é: quanto tempo temos até que o colonialismo digital se torne irreversível?
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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