O uso do Fundo Nacional da Aviação Civil (FNAC) como fonte de recursos para empréstimos a companhias aéreas reacendeu o debate sobre transparência fiscal no Brasil. O modelo, implementado por meio de bancos públicos como o BNDES, permite que o governo conceda crédito subsidiado ao setor sem que os valores apareçam formalmente como gasto primário no orçamento. A prática, embora juridicamente respaldada, é vista por especialistas como a criação de um subsídio implícito, com efeitos diretos sobre a trajetória da dívida pública.
Segundo Jeferson Bittencourt, ex-secretário do Tesouro Nacional e head de macroeconomia do ASA, trata-se de uma operação que “escapa” das amarras do arcabouço fiscal, mas cujo custo real se manifesta de forma indireta. “O impacto não aparece na linha do orçamento, mas aparece na dinâmica da dívida pública”, alerta.
Como funciona o modelo de empréstimos do FNAC?
O FNAC é abastecido, em grande parte, pelas taxas de embarque cobradas de passageiros e tinha como finalidade original financiar investimentos em infraestrutura aeroportuária, especialmente em aeroportos regionais deficitários. A partir de mudanças legislativas recentes, abriu-se espaço para que esses recursos fossem usados em crédito para companhias aéreas, incluindo financiamento de aeronaves, combustível e iniciativas de sustentabilidade.
Na prática, o fluxo é o seguinte:
- O Tesouro transfere recursos do FNAC para bancos públicos, como o BNDES.
- Esses bancos emprestam às companhias aéreas a taxas subsidiadas, próximas de 8% ao ano.
- O Tesouro, que antes recebia entre 13% e 15% ao ano mantendo os recursos na Conta Única (equivalente ao custo médio da dívida pública), passa a receber em torno de 5% a 6%.
- O risco de inadimplência fica com o banco público, e não com a União, evitando que seja necessário provisionar perdas no orçamento.
O resultado, explica Bittencourt, é claro: “O Tesouro abre mão de uma receita importante, e essa diferença é um subsídio implícito que não aparece como despesa primária. O custo existe, mas está escondido.”
Quais são os impactos fiscais desse mecanismo?
O primeiro efeito é a redução da transparência fiscal. Como os empréstimos são classificados como “operações financeiras” e não como gasto, ficam fora do alcance direto do arcabouço fiscal. Isso dificulta a avaliação dos agentes econômicos sobre a real posição fiscal do país.
Além disso, a prática gera um efeito cascata sobre a dívida pública. Ao abrir mão de rendimentos maiores, o governo aumenta a necessidade de endividamento para financiar despesas correntes. E como esses custos não aparecem na despesa primária, há o risco de comprometer a credibilidade das metas fiscais.
Outro ponto é a criação de precedentes. Ao viabilizar o uso de fundos específicos para crédito subsidiado, abre-se caminho para que modelos semelhantes sejam aplicados em outros setores. “Isso pode se tornar uma prática recorrente, enfraquecendo o esforço de responsabilidade fiscal”, alerta o economista.
Subsídio implícito: qual a diferença para políticas anteriores?
Esse tipo de política lembra iniciativas dos anos 2000 e 2010, quando bancos públicos ofereciam crédito direcionado a taxas subsidiadas, em grande escala. A diferença, segundo Bittencourt, é que, no modelo atual, o subsídio não é registrado no orçamento, mas mascarado por classificações contábeis. “É o mesmo princípio do crédito direcionado, mas agora disfarçado de operação financeira. O custo está lá, só não é transparente”, afirma.
Esse mecanismo também dificulta o acompanhamento por órgãos de controle e pelo próprio mercado, já que o impacto só se reflete no fluxo da dívida e não nas estatísticas de resultado primário.
O que justifica essa estratégia?
Do ponto de vista do governo, o objetivo é dar fôlego a um setor estratégico. O transporte aéreo enfrenta pressões decorrentes da alta dos combustíveis, custos elevados de operação e necessidade de investimentos em sustentabilidade e expansão regional. O uso do FNAC surge como alternativa para reduzir o custo de financiamento e sustentar a atividade, especialmente em rotas deficitárias.
No entanto, críticos apontam que esse tipo de apoio deveria ser explicitado no orçamento, de forma transparente. “Não se trata de negar apoio ao setor, mas de explicitar o custo fiscal de cada política. O problema é quando isso é feito por mecanismos pouco transparentes, que corroem a credibilidade fiscal do país”, ressalta Bittencourt.
Quais são os riscos futuros?
Além do impacto direto sobre a dívida pública, há riscos de governança e de eficiência. Sem critérios claros sobre quem pode acessar os empréstimos, quais valores estão sendo liberados e qual será a destinação final dos recursos, abre-se espaço para distorções e questionamentos jurídicos. O próprio comitê gestor da linha demorou mais de 100 dias para ser formado, e os detalhes finais ainda dependem de regulamentação do Conselho Monetário Nacional (CMN).
Outro risco é o de dependência: empresas podem se acostumar ao crédito subsidiado, reduzindo os incentivos para eficiência operacional e aumento de competitividade. Nesse sentido, a medida, que deveria ser transitória, pode acabar se perpetuando.
FNAC: solução emergencial ou problema de longo prazo?
No curto prazo, a estratégia ajuda companhias aéreas a enfrentar um cenário desafiador e garante alguma estabilidade em rotas deficitárias. No médio e longo prazo, porém, o custo recai sobre a sociedade em forma de dívida mais alta e menor transparência das contas públicas.
Para Jeferson Bittencourt, o dilema é claro: “A União pode até justificar o apoio a um setor estratégico, mas não pode esconder o custo fiscal. Sem transparência, compromete-se a credibilidade, e credibilidade é o ativo mais importante da política econômica.”
Assim, o debate em torno do FNAC simboliza o desafio central do Brasil: como conciliar apoio a setores específicos com a preservação da responsabilidade fiscal, evitando que subsídios ocultos fragilizem ainda mais a confiança no país.