Se você é investidor brasileiro e acredita que o dólar é sempre sinônimo de segurança, talvez esteja na hora de olhar para a maior anomalia do sistema financeiro internacional: o Tether, a stablecoin privada que movimenta centenas de bilhões de dólares e que hoje conta, de forma surpreendente, com laços no coração de Wall Street e até em Washington.
Desde Bretton Woods, o dólar transformou-se no eixo de confiança global, sustentado não apenas pelo poder econômico dos Estados Unidos, mas pelo seu aparato institucional e militar. No entanto, nas últimas duas décadas, emergiu uma figura inesperada nesse tabuleiro: o Tether, emitido por uma empresa sem sede em Washington, que se converteu em uma espécie de sombra digital do dólar. Seu crescimento vertiginoso revela tanto a fome mundial por liquidez em moeda forte quanto a incapacidade das instituições tradicionais de suprir essa demanda na velocidade dos mercados digitais.
O Tether é uma anomalia porque não deveria existir em tamanha escala sem a chancela do Estado americano. Representa, em termos práticos, um dólar paralelo que se espalhou por corretoras de criptomoedas, regiões de alta inflação e países sujeitos a sanções. Onde o sistema bancário fecha as portas, o Tether oferece acesso. Onde o compliance torna a liquidez escassa, o token se impõe como alternativa pragmática. É o triunfo da utilidade sobre a ortodoxia regulatória.
Mas esse sucesso também alimenta suspeitas. Nos bastidores, cresce a percepção de que o Tether não é apenas uma ousadia tecnológica, mas parte de um jogo mais complexo envolvendo interesses de Wall Street e da política americana. A parceria com a Cantor Fitzgerald, uma das instituições financeiras mais tradicionais de Nova York, responsável por custodiar parte das reservas do USDT, coloca a stablecoin em uma zona ambígua. Howard Lutnick, CEO da Cantor e hoje Secretário de Comércio no governo Trump, aparece como figura-chave nesse enredo. Um veterano de mercado que reconstruiu sua empresa após o 11 de Setembro, agora ocupa um posto central na formulação de políticas comerciais do país — ao mesmo tempo em que sua instituição é peça vital na engrenagem que sustenta o Tether. Esse cruzamento de papéis alimenta especulações: estaria o establishment, de forma tácita, garantindo espaço para que essa anomalia sobreviva?
Minha opinião é que tudo o que é disruptivo, seja uma stablecoin, seja a inteligência artificial, tem um preço a pagar pela sociedade. Esse preço se manifesta em erros, crises, regulamentações e leis que, aos poucos ou de maneira abrupta, vão normalizando mudanças epocais. O Tether não faz exceção. A diferença é que, neste caso, a stablecoin age como um banco central sem ter as regulamentações de um banco central, nem a transparência que se exige de uma instituição desse porte. Em jogo está uma quantidade colossal de dinheiro, e a sociedade mundial precisa considerar com seriedade esse desequilíbrio.
O que aconteceria, então, se o governo dos Estados Unidos resolvesse lançar sua própria stablecoin, um dólar digital oficial emitido pelo Tesouro ou pelo Federal Reserve? Essa hipótese, cada vez mais debatida em Washington, reconfiguraria por completo o ecossistema das moedas digitais. Uma versão oficial teria auditoria, transparência e plena integração ao sistema bancário, tornando-se imediatamente a reserva digital de valor mais segura do planeta. Bancos centrais estrangeiros poderiam deter esse ativo com a mesma legitimidade que hoje guardam Treasuries, enquanto fintechs e grandes corporações poderiam operar pagamentos instantâneos com risco zero de contraparte.
Nesse cenário, o Tether se veria encurralado. Sua principal proposta de valor — ser um dólar digital estável e acessível — perderia peso diante da concorrência de uma versão soberana. O “Fedcoin” não deixaria espaço no centro do sistema. Mas o desaparecimento não é o destino mais provável. Assim como a própria economia global vive em camadas, o Tether encontraria nichos. Continuaria circulando em ambientes offshore, em mercados cinzentos ou onde a exigência de conformidade com normas americanas fosse considerada indesejável.
O ponto central dessa discussão não é apenas tecnológico ou financeiro, mas geopolítico. Um dólar digital oficial reforçaria a hegemonia americana em um momento em que China, Europa e até Brasil ensaiam projetos próprios de moedas digitais soberanas. Ao mesmo tempo, eliminaria parte da “zona cinzenta” que hoje permite ao Tether prosperar. Seria um recado claro de que Washington não pretende tolerar intermediários privados disputando o privilégio de emitir um dólar alternativo.
Para o investidor brasileiro, a lição é clara: a segurança do dólar não é mais um conceito absoluto, mas uma arena em disputa entre versões oficiais e paralelas, entre transparência institucional e utilidade prática. E entre essas fronteiras tênues, onde Howard Lutnick e o Tether se encontram, está se desenhando mais um capítulo da longa história da moeda mundial.
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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