No mercado financeiro, narrativas podem ser tão valiosas quanto números. A maneira como uma empresa se apresenta ao mercado é capaz de atrair capital, sustentar valuations e alimentar expectativas de crescimento. Porém, quando investidores acreditam que estão diante de um negócio “único no mundo”, correm o risco de cair no viés da singularidade, um fenômeno psicológico que distorce previsões e pode destruir valor em larga escala.
Segundo Álvaro Camargo, consultor, pesquisador e professor convidado dos MBAs da FGV, esse viés é a crença de que determinado projeto não pode ser comparado a nenhum outro, levando gestores e investidores a superestimar retornos e subestimar riscos. “É a ilusão do pioneirismo absoluto. Todo viés gera problemas, e o da singularidade não foge à regra”, afirma o especialista.
O que significa o viés da singularidade?
O termo ganhou notoriedade após relatos do Nobel de Economia Daniel Kahneman. Ele contou que, junto a colegas, acreditava concluir um livro em dois anos por se tratar de um projeto “especial”. No fim, a obra levou oito anos para ser finalizada. Esse exemplo ilustra como o viés da singularidade cria falsas expectativas e compromete o planejamento.
No mercado de capitais, esse mecanismo psicológico se traduz em narrativas de “empresa única”, “modelo de negócio sem precedentes” ou “tecnologia disruptiva”. Além disso, é especialmente evidente em IPOs e captações de startups, quando o entusiasmo com a singularidade supostamente inédita leva a valuations inflados.
Quais casos revelam os riscos do viés da singularidade?
Diversos episódios recentes ajudam a entender como o excesso de confiança em narrativas de pioneirismo pode gerar perdas bilionárias:
- WeWork: vendida como uma revolução na forma de trabalhar, foi avaliada em dezenas de bilhões de dólares. Ao revelar-se apenas uma empresa de coworking com dificuldades financeiras, viu seu valor desmoronar.
- Virgin Orbit: criada pelo grupo Virgin, abriu capital com valuation de US$ 3,7 bilhões. Após falhas técnicas e falta de financiamento, entrou em recuperação judicial. Seus ativos foram vendidos por menos de 1% do valor inicial.
- OGX: no Brasil, prometeu transformar o setor de petróleo e gás. Com forte narrativa de inovação e genialidade de seu fundador, Eike Batista, foi considerada a futura petroleira privada nacional. Mais tarde, ficou evidente a falta de reservas suficientes e de capacidade técnica, corroendo a confiança dos investidores.
Esses exemplos mostram como o discurso de singularidade mascara fragilidades e cria expectativas irreais. Quando a realidade se impõe, os prejuízos são amplificados.
O impacto do viés da singularidade em números
O custo do viés da singularidade também pode ser medido. Um estudo da Saïd Business School, da Universidade de Oxford, analisou 219 projetos de TI e concluiu que cada ponto adicional na percepção de singularidade resultou em, em média, 5% de custos extras além do planejado.
Nesse sentido, se em projetos corporativos o impacto já é alto, em mercados de capitais ele pode significar bilhões em perdas de valor. Isso porque investidores acabam aceitando projeções superestimadas, confiando mais na narrativa de exclusividade do que em fundamentos sólidos.
O viés da singularidade é bitributação das expectativas?
Embora não se trate de um imposto, a lógica é semelhante, assim como na bitributação há sobreposição de cobranças, o viés da singularidade sobrepõe expectativas. Ele cria uma camada extra de otimismo que não encontra base na realidade. Por outro lado, não se trata de fraude ou manipulação, mas de uma tendência psicológica natural a supervalorizar aquilo que parece inédito.
A consequência prática é clara, investidores ‘vendados’ por discursos de pioneirismo correm maior risco de ignorar métricas financeiras, histórico de mercado e comparações com empresas similares.
Como os investidores podem se blindar contra esse viés?
Segundo Camargo, proteger-se contra o viés da singularidade exige disciplina analítica. “É essencial olhar para paralelos históricos e comparar fundamentos. Vale desconfiar quando as narrativas parecem boas demais para serem verdade”, explica.
Nesse processo, algumas práticas se destacam:
- Comparar com casos passados: nenhuma empresa é completamente inédita. Há sempre lições históricas úteis.
- Analisar fundamentos: verificar balanços, capacidade de execução, escalabilidade e sustentabilidade do negócio.
- Evitar a armadilha do “dessa vez é diferente”: frase clássica que muitas vezes precede crises de mercado.
- Seguir o princípio de Warren Buffet: investir apenas em empresas cujo modelo de negócio seja compreendido de forma clara.
No fim das contas, as empresas raramente são tão únicas quanto parecem. Reconhecer isso não diminui o valor de uma inovação, mas a coloca na perspectiva correta. Em um mercado onde expectativas podem se transformar em bilhões de dólares, separar mito de realidade é mais do que prudência, é sobrevivência.
Como conclui Álvaro Camargo, o desafio do investidor é simples, mas exige disciplina, enxergar além das narrativas e avaliar se o brilho da suposta singularidade não passa de um reflexo temporário.