A crise gerada pela imposição de tarifas de até 50% pelos Estados Unidos sobre produtos do agronegócio brasileiro foi o estopim de um alerta maior: o Brasil é estruturalmente dependente da potência norte-americana, não apenas no comércio, mas também em áreas críticas como tecnologia, infraestrutura digital, segurança de dados e logística agrícola.
De acordo com o analista político e econômico Miguel Daoud, essa dependência vem sendo ignorada sob a falsa sensação de estabilidade. “Durante décadas, a parceria com os Estados Unidos foi tratada como sinônimo de segurança. Mas a realidade é que estamos vulneráveis a decisões unilaterais de Washington que impactam diretamente o coração da nossa economia: o agro”, afirma.
Essa vulnerabilidade, no entanto, vai além das tarifas. O Brasil é hoje duplamente dependente dos Estados Unidos: como cliente das nossas commodities agrícolas e como fornecedor de tecnologia e infraestrutura digital que sustentam tanto o setor privado quanto os serviços públicos do país.
O agro do Brasil como refém comercial
O caso do café é ilustrativo. O Brasil é responsável por aproximadamente 30% de todo o café importado pelos EUA. Isso nos torna essenciais para o consumidor americano, mas também nos coloca em posição frágil.
“Apesar de termos diversificado para Europa, Ásia e Oriente Médio, o volume comprado pelos EUA ainda é insubstituível no curto prazo”, explica Daoud. “Se esse canal for fechado por tarifas ou restrições geopolíticas, não há rota imediata que possa absorver essa produção.”
Segundo o analista, o setor agropecuário não está preparado para suportar uma ofensiva protecionista dessa magnitude. Além das tarifas, o produtor rural já lida com uma equação complexa: queda nos preços internacionais, custo Brasil elevado, juros altos e logística deficiente.
E o impacto seria em cadeia: menor receita no campo, estoques acumulados, perda de empregos e redução na atividade econômica nas regiões produtoras.
A invisível da dependência: tecnologia americana no coração do Brasil
Paralelamente à ameaça comercial, há outra fragilidade menos visível, mas igualmente crítica: a dependência tecnológica e digital. Para o advogado Solano de Camargo, presidente da Comissão de Proteção de Dados da OAB-SP, o Brasil está à mercê das big techs americanas, inclusive em áreas estratégicas como defesa, saúde e justiça.
“Boa parte das plataformas governamentais está hospedada em nuvens de empresas dos EUA, sujeitas às leis norte-americanas, como o Cloud Act”, afirma. Essa legislação, aprovada em 2018, permite ao governo dos EUA acessar dados armazenados por empresas americanas mesmo se esses dados estiverem fora do território americano.
“O fato é que os EUA podem acessar diretamente a operação de tecnologia critica do Brasil, como dados da Receita Federal, sistema de saúde pública e até as Forças Armadas”, alerta Solano.
Brasil corre risco silencioso com o GPS
Tanto Daoud quanto Solano alertam para outro ponto sensível: o sistema de navegação por satélite GPS, operado exclusivamente pelo Departamento de Defesa dos EUA, é utilizado em larga escala na agricultura de precisão, no transporte aéreo e marítimo, em operações bancárias, redes elétricas e até serviços de emergência.
“Se os EUA decidirem limitar o acesso ao GPS, como já fizeram em situações de conflito, o impacto sobre o agronegócio, a logística nacional e até o funcionamento de infraestruturas críticas pode ser devastador”, afirma Daoud.
E não há plano B. O Brasil ainda não tem um sistema nacional de navegação, como o Galileo europeu, o GLONASS russo ou o BeiDou chinês. Criar uma alternativa exigiria bilhões em investimento e décadas de pesquisa.
O preço da autonomia: Brasil precisa decidir seu futuro estratégico
A dependência brasileira dos Estados Unidos, segundo os especialistas, não é uma falha pontual. É uma vulnerabilidade estrutural que coloca o país em posição passiva frente às potências globais.
“A soberania digital deveria estar no centro da agenda de Estado. Não se trata de ideologia, mas de sobrevivência em um mundo onde dados, tecnologias e rotas comerciais viraram armas de poder”, afirma Solano.
Para mudar esse cenário, o Brasil precisa agir em múltiplas frentes:
Frente comercial:
- Diversificar mercados compradores de commodities;
- Estimular acordos bilaterais fora do eixo EUA-Europa;
- Fortalecer a industrialização e o valor agregado do agro brasileiro.
Frente digital:
- Reduzir a dependência de empresas americanas, adotando soluções open source;
- Exigir transparência nos contratos com big techs e garantir auditabilidade;
- Criar protocolos para migração emergencial de dados e serviços em caso de crise.
Frente geopolítica:
- Desenvolver sistema próprio de navegação por satélite;
- Investir em semicondutores, criptografia, startups estratégicas e inteligência cibernética;
- Liderar, no Mercosul, projetos regionais de infraestrutura digital soberana.
Lições de 2013 não aprendidas pela Brasil
O episódio de espionagem da ex-presidente Dilma Rousseff pela NSA em 2013 é citado como marco do descuido brasileiro. Alemanha e França reagiram exigindo que dados de governo ficassem em solo nacional. O Brasil, não.
“A pergunta que fica é: até quando vamos aceitar ser meros usuários de sistemas que não controlamos, nem sequer compreendemos completamente?”, provoca Solano.
Potência agrícola, dependente digital
O Brasil é uma potência agrícola, mas age como um país sem controle sobre sua infraestrutura tecnológica. A crise das tarifas e os alertas sobre soberania digital mostram que é hora de repensar o papel do país no sistema internacional.
“O agro é forte, sim. Mas depende de uma ordem internacional instável e de uma infraestrutura digital que pode ser desligada por decisão de outro governo. A autonomia tem um custo. Mas a dependência tem um preço ainda maior”, conclui Daoud.