O impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tem voltado ao debate político e jurídico nos últimos anos, especialmente diante de controvérsias envolvendo decisões da Corte e o acirramento entre os Poderes. Apesar de muitos acreditarem que se trata de um mecanismo inexistente ou de aplicação incerta, a legislação brasileira prevê, sim, a possibilidade de afastamento de ministros do STF por crime de responsabilidade.
A Constituição Federal de 1988, combinada com a Lei nº 1.079, de 1950, estabelece as bases para esse tipo de processo. No entanto, nunca houve um impeachment efetivado contra ministros da Suprema Corte no Brasil democrático — e os obstáculos não são apenas legais, mas também culturais e políticos.
Para entender o tema, a BM&C News ouviu a professora de Direito Mariana Souza Schedeloski, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (campus Alphaville), que explicou os fundamentos legais, o rito detalhado do processo e os entraves práticos para sua aplicação.
O que diz a Constituição sobre impeachment de ministro do STF?
O artigo 52 da Constituição Federal determina que compete privativamente ao Senado Federal: “processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade”.
Apesar de o texto constitucional não usar a palavra “impeachment” nesse contexto, o processo é funcionalmente equivalente. A Constituição atribui ao Senado o papel de tribunal político quando se trata de autoridades do Judiciário, assim como já ocorre no caso do presidente da República.
Lei 1.079/1950 e os crimes de responsabilidade
A base normativa que regulamenta esse procedimento é a Lei nº 1.079/1950, conhecida como Lei do Impeachment. A norma define os crimes de responsabilidade e detalha o rito aplicável ao julgamento de autoridades como o presidente da República, ministros do STF, procurador-geral da República, ministros de Estado, entre outros.
Segundo a professora Mariana Schedeloski, até mesmo uma tentativa de crime pode justificar o impeachment. Isso está previsto no artigo 2º da lei, que afirma que os atos podem ser punidos mesmo quando “não consumados, desde que sua execução tenha sido iniciada”.
No caso dos ministros do STF, os crimes estão listados especificamente no artigo 39. Entre eles:
- Alterar, por qualquer meio, o voto já proferido, salvo se por via de recurso ou decisão do colegiado;
- Proferir julgamento sendo suspeito, o que compromete a imparcialidade judicial;
- Exercer atividade político-partidária, o que infringe a exigência de neutralidade;
- Descumprir os deveres do cargo com desídia, ou seja, agir com grave negligência;
- Faltar com honra e decoro exigidos pela função pública, algo que pode incluir comportamentos pessoais ou públicos incompatíveis com a posição.
O que caracteriza a suspeição de um ministro?
A professora esclarece que a suspeição é uma situação jurídica que impede a atuação de um magistrado em determinado processo, para garantir a imparcialidade.
Segundo o Código de Processo Civil, um juiz (e por extensão, um ministro) deve se declarar suspeito quando:
- É amigo íntimo ou inimigo capital de uma das partes;
- Já aconselhou alguma das partes no mesmo assunto;
- Tem relação de interesse econômico direto ou indireto (ex: é sócio, credor ou devedor);
- Tem relação familiar próxima com algum dos envolvidos no processo.
“Um ministro não pode participar de julgamentos nos quais sua imparcialidade esteja comprometida. Se o fizer, estará cometendo crime de responsabilidade”, resume Mariana.
Quem pode apresentar um pedido?
Qualquer cidadão brasileiro pode apresentar uma denúncia contra um ministro do STF por crime de responsabilidade. Não é necessário ser parlamentar, advogado ou autoridade pública.
Essa é uma diferença importante em relação ao impeachment presidencial, cuja tramitação inicia-se obrigatoriamente na Câmara dos Deputados. No caso dos ministros do STF, o processo é instaurado diretamente no Senado Federal, que exerce a função de tribunal político e julgador.
Como funciona o rito do processo?
O processo de impeachment de um ministro do STF segue uma série de etapas formais, conforme previsto nos artigos 41 a 66 da Lei 1.079/1950:
1. Recebimento da denúncia
- A denúncia é protocolada no Senado Federal e submetida à análise do presidente da Casa, que avalia a admissibilidade jurídica e política.
2. Formação da comissão especial
- Se o presidente do Senado admitir a denúncia, é criada uma comissão composta por senadores para emitir um parecer preliminar.
3. Primeira votação no plenário
- O parecer é submetido à votação do plenário do Senado, que decide, por maioria simples, se o processo deve ser instaurado.
4. Instrução e defesa
- Com a instauração, o acusado é formalmente citado e tem direito à ampla defesa.
- São ouvidas testemunhas, podendo haver acareações e debates públicos entre acusação e defesa.
5. Julgamento final
- O julgamento é realizado em sessão plenária.
- Os senadores respondem duas perguntas:
- Se o ministro cometeu o crime de responsabilidade;
- Se deve ser condenado à perda do cargo e inabilitação por até cinco anos.
- Para condenação, é necessário o voto de dois terços dos senadores presentes.
Já houve impeachment de ministro do STF?
Não. Nunca houve um impeachment efetivado de ministro do Supremo Tribunal Federal no Brasil contemporâneo.
O único caso de afastamento registrado ocorreu em 1894, quando o então ministro Barata Ribeiro foi destituído após ser rejeitado pelo Senado. Na época, o processo de nomeação era diferente: o indicado tomava posse antes de ser sabatinado. Ribeiro, que era médico (e não jurista), foi considerado inapto para o cargo.
Quais são os entraves?
Apesar de legalmente possível, o impeachment de um ministro do STF enfrenta entraves políticos e culturais.
“Não temos a cultura de levar esse tipo de processo adiante. Ainda que existam pedidos, como os que envolveram ministros como Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes ou Luís Roberto Barroso, o custo político de iniciar um julgamento dessa magnitude é alto”, analisa Mariana.
Além disso, a maioria do Senado evita tensionar relações com o Judiciário, especialmente em um cenário de instabilidade política.
O processo de impeachment de um ministro do STF é um instrumento legítimo e previsto em lei, que visa garantir responsabilidade institucional e equilíbrio entre os Poderes. Contudo, a sua aplicação depende de força política, articulação e vontade institucional, fatores escassos em um sistema que preza pela estabilidade entre os entes da República.
Em um momento de crescente judicialização da política e politização do Judiciário, o debate sobre os limites da atuação dos ministros do Supremo e os mecanismos de controle democrático segue mais atual do que nunca.