Durante o governo militar, um truque manjado pelas autoridades era o de colocar a culpa na esquerda por atentados ou situações vexatórias para o regime. O ex-presidente Jair Bolsonaro, ontem, usou a mesma tática para explicar o quebra-quebra ocorrido na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. “Um movimento mais do que claro orquestrado pela esquerda. Lula não estava em Brasília. No dia anterior, foi para Araraquara, porque sabia o que iria acontecer”, afirmou Bolsonaro em evento realizado na avenida Paulista, para um público significativamente menor que as manifestações realizadas no passado por iniciativa do pastor Silas Malafaia.
Um exemplo que pode ser pinçado do passado foi a explosão de um carro no Riocentro, em 30 de abril de 1981. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, que carregava uma bomba no colo, foi morto instantaneamente (o capitão Wilson Machado, ferido gravemente, sobreviveu). O Inquérito Policial Militar divulgado no mesmo ano tentou atribuir a culpa a grupos de esquerda, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que já estava inativa desde 1973.
Em coluna publicada em 1999, o jornalista Elio Gaspari escreveu que o IPM foi uma “fantasia” conduzida pelo coronel Job Lorena de Sant’Anna, que concluiu que os militares envolvidos eram “vítimas de um atentado de esquerda (coisa que não acontecia desde 1972)”. “Abriram um IPM de fantasia […] Ele concluiu que tanto o capitão quanto o sargento foram vítimas de um atentado de esquerda”, afirmou Gaspari.
Um pouco antes, em 27 de agosto de 1980, uma carta-bomba foi enviada à sede do Conselho Federal da OAB, no Rio de Janeiro, e matou a secretária Lyda Monteiro da Silva. O destinatário era o então presidente da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes, que vinha denunciando abusos do regime de exceção. Na época, não houve investigação efetiva, e o governo alimentou boatos de que o atentado poderia ter sido obra de “radicais de esquerda”.
Entre 1979 e 1981, houve uma série de explosões em bancas de jornais e em redações de jornais ligados à esquerda, como “Movimento”, “Opinião” e “Hora do Povo”. O governo nunca mencionou diretamente que os autores eram oriundos de movimentos esquerdistas, mas falava em “grupos desconhecidos” ou “radicais”, sem especificar ideologia.
Nestes episódios, porém, qual seria o interesse de terroristas esquerdistas em atacar periódicos ou instituições que faziam oposição à ditadura militar? Obviamente, a resposta é: nenhum.
Diante da afirmação do ex-presidente, é possível perguntar: por que os vídeos e registros fotográficos feitos na ocasião mostram manifestantes vestindo roupas com frases como “Meu partido é o Brasil” ou “Intervenção militar já”, além de bandeiras e cartazes com o rosto de Bolsonaro? Seriam esquerdistas infiltrados? Dificilmente.
Além disso, das 546 pessoas que se acertaram com a Procuradoria Geral da República (chamados de ANPPs — acordos de não persecução penal) e se livraram da cadeia, pelo menos quatrocentas estavam acampadas diante dos quartéis, pedindo algum tipo de ação para barrar a posse do novo governo.
Bolsonaro precisa respeitar a inteligência alheia se quiser permanecer vivo no jogo político. Apenas sua militância não conseguirá mantê-lo na liderança da direita caso ele continue a defender teorias estrambóticas e sem consistência. Esse tipo de baboseira não colava nem nos tempos em que vivíamos em uma era analógica. Em tempos digitais, explicar o inexplicável com narrativas conspiratórias é flertar com o desastre político e com o isolamento ideológico.