Foi só uma tesourada. Mas dessas que ecoam. A BYD, gigante chinesa da mobilidade elétrica, anunciou cortes de até 35% em mais de 20 modelos. O Seagull, compacto elétrico, foi rebaixado à faixa dos USD 7.500, algo próximo de R$ 38 mil. O Seal O7, sedã de ambições globais, perdeu USD 6.900 do valor de tabela. Para quem olha apenas a etiqueta, parece liquidação. Para quem enxerga o tabuleiro, é ofensiva militar.
Em menos de 48 horas, concorrentes como Changan e Leapmotor seguiram o movimento. As bolsas tremeram: BYD caiu 8,3% em Hong Kong, Geely perdeu 7%, Xpeng recuou 4% e Nio, 3%. Não se trata apenas de uma guerra de preços, mas do estopim de uma nova geografia automotiva mundial.
Hoje, a indústria automotiva chinesa opera com o dobro da capacidade que o mercado doméstico consegue absorver. São mais de 50 milhões de carros possíveis para um mercado de 25 milhões de compradores. E a conta não fecha, a não ser que a produção vaze para outros continentes, como já está acontecendo.
Na ausência de crescimento interno, as montadoras chinesas precisam de oxigênio externo. E não é coincidência que a BYD tenha apostado no Brasil como um dos pulmões. A fábrica em Camaçari, na Bahia, com investimento de R$ 3 bilhões, não é gesto isolado. É a âncora de uma estratégia global: produzir localmente para contornar barreiras tarifárias, ganhar escala e aplicar a mesma lógica que funciona em Shenzhen, volume brutal, margem mínima, domínio absoluto.
O Brasil no espelho retrovisor
O Brasil vendeu, em 2024, 2,3 milhões de veículos leves. Só 2,8% foram elétricos. Parece pouco. Mas esse volume cresceu mais de 90% em dois anos. E está prestes a se transformar em um novo campo de disputa, não por escolha nossa, mas por inércia diante do que vem.
Se a tendência chinesa for aplicada aqui, é razoável esperar que modelos como o BYD Dolphin, hoje custando R$ 149 mil, sejam oferecidos em breve por R$ 110 mil ou menos. E que o Seagull possa desembarcar abaixo dos R$ 90 mil, ultrapassando com folga os limites de preço que há décadas definem o segmento de entrada no Brasil.
Enquanto isso, os concorrentes locais ainda discutem planos de eletrificação, sem escala, sem cadeia de fornecimento pronta, e com centros de decisão a um oceano de distância. O risco é claro: o mercado brasileiro pode ser dominado por produtos chineses antes que a indústria brasileira tenha tempo de reagir.
Três choques à vista
1. Preço: oconsumidor brasileiro está prestes a descobrir que pode ter um carro elétrico pelo mesmo preço de um carro 1.0 automático a combustão. Isso muda tudo: o pensamento das famílias, das locadoras e das frotas empresariais. O problema? Não muda a velocidade da resposta industrial local.
2. Emprego: a cadeia automotiva representa mais de 1 milhão de empregos diretos e indiretos. Se os motores a combustão forem substituídos por motores elétricos importados com baixa agregação local, o impacto sobre fornecedores Tier 2 e Tier 3 será imediato. A Anfavea estima a perda de até 150 mil empregos se nada for feito até 2028.
3. Soberania produtiva: sem política industrial clara, o país vira colônia de montagem. E não é só retórica. O risco é virar um consumidor passivo de carros globais, sem tecnologia, sem cadeia nacional, sem inovação, apenas com galpões e notas fiscais.
O dilema de Brasília: abrir o mercado ou proteger a indústria?
O governo acenou com o aumento gradual da alíquota de importação de elétricos para 18% até 2026. Mas essa régua se aplica pouco à BYD, que vai fabricar localmente. O problema não é mais apenas a importação. É a ausência de exigência de conteúdo local, de metas tecnológicas, de compromissos com a cadeia de fornecedores brasileiros.
Enquanto isso, os subsídios públicos que sustentam as montadoras chinesas internamente continuam fortes. Se esses incentivos forem retirados, a China pode viver um colapso automotivo semelhante ao que viveu com o setor imobiliário.
Mas até lá, quem estiver no caminho da avalanche, como o Brasil, pode virar entulho de uma disputa que nem começou por aqui.
O consumidor ganha. A indústria perde?
O brasileiro comum vai se beneficiar no curto prazo: carros mais tecnológicos, com menor custo de uso e preços em queda. Mas o ganho imediato esconde uma bomba-relógio. Sem políticas firmes de nacionalização e proteção inteligente (não protecionismo burro), o país pode destruir uma de suas últimas indústrias completas — do projeto ao acabamento.
O Brasil precisa decidir se quer ser polo de exportação elétrica regional ou mera prateleira de showroom asiático. E essa decisão não é apenas econômica: é estratégica. O futuro não será híbrido. Será elétrico, e a questão agora é: quem vai conduzir e quem vai ficar no porta-malas?
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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