O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) foi criado em 1966, durante o regime militar, com o objetivo de proteger o trabalhador demitido sem justa causa. Desde então, ele tem funcionado como uma poupança forçada, oferecendo uma espécie de segurança financeira em situações de perda de emprego. O empregador é obrigado a depositar mensalmente o equivalente a 8% do salário do empregado em uma conta vinculada, e esses recursos ficam disponíveis em situações específicas como demissão sem justa causa, aposentadoria, doença grave ou compra da casa própria.
Nos últimos anos, o FGTS passou por mudanças importantes, introduzindo novas modalidades de saque com o saque-rescisão e o saque-aniversário. Enquanto o saque-rescisão mantém a condição original de resgate do valor total acumulado em caso de demissão sem justa causa, o saque-aniversário permite ao trabalhador retirar anualmente parte do saldo do FGTS no mês de seu aniversário. Essa opção trouxe mais flexibilidade e liquidez, permitindo ao trabalhador acesso parcial a estes recursos. Desde a implementação do saque-aniversário do FGTS em 2020, os resgates dessa modalidade somaram R$ 125,4 bilhões até agosto de 2024. O saque-aniversário ganhou adesão significativa com cerca de 35,5 milhões de participantes neste período.
Com essa maior liquidez, surgiram novos produtos financeiros como o crédito com garantia do FGTS, em que o trabalhador utiliza o saldo como garantia para obter empréstimos a juros mais baixos do que os praticados em linhas de crédito pessoal, e que só estão acima dos juros dos empréstimos consignados. Esses produtos oferecem uma alternativa para trabalhadores que precisam de recursos, especialmente para aqueles com restrições financeiras, que têm dificuldade em acessar outras formas de crédito.
Entretanto, essa flexibilidade e o desenvolvimento de novos produtos financeiros em torno do FGTS levantam questões a serem discutidas. Historicamente, muitos brasileiros não possuem reservas financeiras suficientes para lidar com imprevistos como demissões ou problemas de saúde. Nesse contexto, o FGTS acaba funcionando como uma poupança compulsória, um mecanismo do Estado para assegurar que o trabalhador tenha algum tipo de reserva financeira.
No entanto, depender de um fundo compulsório não deveria ser a única forma de garantir a segurança financeira dos brasileiros. Idealmente, cada pessoa deveria ser responsável por construir e gerenciar sua própria reserva de emergência, sem depender exclusivamente de uma imposição do Estado. Mas, para que isso seja viável, é essencial elevar o nível de educação financeira da população. Sem o conhecimento adequado, o trabalhador pode não compreender a importância de poupar por conta própria, de avaliar suas escolhas financeiras de maneira correta ou de planejar seu futuro com segurança.
Oferecer mais liquidez, como no caso do saque-aniversário, ou criar novos produtos financeiros de crédito sem antes proporcionar uma base sólida de educação financeira, pode levar o trabalhador a utilizar esses recursos de forma inadequada. Em vez de usar o saque-aniversário para obter melhor rentabilidade ou quitar dívidas mais caras, muitos acabam optando pelo consumo imediato. Com isso, o fundo que deveria servir como uma proteção em tempos de necessidade pode se tornar uma ferramenta que estimula o consumo e o endividamento, agravando ainda mais a situação financeira do trabalhador.
Além disso, a modalidade de crédito com garantia do FGTS ainda representa um custo financeiro alto. Para quem já enfrenta dificuldades para manter o orçamento equilibrado, o uso desse crédito para o consumo pode levar a um ciclo de endividamento ainda mais perigoso. Dessa forma, o trabalhador corre o risco de esgotar suas reservas sem conseguir quitar suas dívidas, aumentando sua vulnerabilidade financeira.
Sobre a rentabilidade, o FGTS é remunerado a 3% ao ano mais a Taxa Referencial (TR), o que muitas vezes não consegue cobrir a inflação. De alguns anos para cá, decidiu-se fazer a distribuição dos lucros gerados pelo fundo, o que melhora ligeiramente a rentabilidade para os trabalhadores. A partir de 2025, uma nova regra entra em vigor: caso a remuneração de 3% ao ano mais TR não cubra a inflação, o saldo do FGTS deverá ser corrigido pelo IPCA, garantindo assim, no mínimo, a preservação do poder de compra dos recursos depositados.
Esse ajuste, que começa a valer no ano que vem, visa corrigir uma das principais críticas ao FGTS: a baixa rentabilidade que, por muitos anos, ficou aquém de outros índices de referência como o CDI, e até mesmo da inflação. Mesmo com essa mudança, a questão da rentabilidade do FGTS continua sendo um ponto de atenção, especialmente para trabalhadores que têm outras opções de investimento com maior potencial de retorno. Diante disso, a possibilidade de o trabalhador retirar parte do saldo anualmente poderia ser melhor aproveitada se esses recursos fossem realocados em investimentos de maior rentabilidade, ajustados ao perfil de risco de cada pessoa. Ou seja, o saque-aniversário poderia ser uma oportunidade de transformar uma reserva de baixa rentabilidade em uma carteira de investimentos mais eficiente e lucrativa, desde que isso fosse feito com orientação e planejamento.
Recentemente, o governo vem discutindo a possibilidade de acabar com o saque-aniversário, reforçando o caráter compulsório do FGTS. Por outro lado, os bancos se posicionam contra essa mudança, argumentando que o saque-aniversário impulsiona o mercado de crédito com garantia do FGTS, oferecendo uma linha de financiamento com juros mais baixos e acessível até para quem está negativado. Esse debate coloca em cheque o modelo de gestão financeira do FGTS: manter o controle estatal sobre as reservas dos trabalhadores ou permitir mais liberdade de escolha?
Apesar do cenário ser complexo, não acredito que o FGTS deva continuar sendo estritamente compulsório, com o Estado assumindo o papel de gestor do dinheiro dos trabalhadores, algo que, em essência, é uma responsabilidade individual. Por outro lado, simplesmente oferecer total liberdade de escolha em um contexto onde há uma clara falta de educação financeira pode aumentar o risco de endividamento. O ideal seria encontrar um equilíbrio entre essas duas abordagens.
Uma solução seria combinar o modelo compulsório atual com uma versão aprimorada do saque-aniversário, condicionada ao uso responsável dos recursos. Por exemplo, o trabalhador poderia ter acesso ao saque-aniversário após demonstrar um entendimento básico sobre planejamento financeiro ou participar de um curso de educação financeira. Essa preparação contribuiria para que a decisão de saque fosse tomada de forma mais consciente.
A liberdade de escolha é fundamental, mas ela precisa vir acompanhada de responsabilidade e de conhecimento. Sem isso, o risco é que as pessoas continuem não poupando e se endividem ainda mais, comprometendo sua segurança financeira. É necessário evoluir para um modelo em que o trabalhador tenha mais autonomia sobre o uso do seu próprio dinheiro do FGTS. No entanto, essa autonomia precisa ser construída sobre uma base de educação financeira para que o FGTS seja, de fato, um instrumento de proteção, e não mais uma fonte de risco financeiro.
*Artigo escrito por Carlos Castro é planejador financeiro pessoal, CEO e sócio fundador da plataforma de saúde financeira SuperRico.