
Vítor Flores – Dia 31 de maio de 2023 foi um dia injusto para pessoas jurídicas tributadas no Lucro Presumido.
Nessa data, os investidores de alguns tipos de fundos de investimento sofreram a cobrança do Imposto de Renda na Fonte (IRRF) em sua modalidade conhecida como “come-cotas”. O administrador do fundo reduzirá a quantidade de cotas dos investidores, em valor suficiente para recolher o imposto, calculado às alíquotas de 15% ou 20%. Essa cobrança ocorre ao final de maio, e também ao final de novembro.
Esse IRRF funciona como antecipação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) devido pelas pessoas jurídicas (PJ). Por exemplo, se o IRRF é de 15% e o IRPJ é de 25%, o investidor somente precisará pagar a diferença de 10% de IRPJ.
Mas pode haver um tempo bastante largo entre o momento da cobrança do come-cotas e o vencimento do IRPJ. No caso das PJs tributadas no regime do Lucro Presumido, especificamente aquelas que escolhem tributar suas receitas em regime de caixa (tributação no recebimento das receitas), o IRPJ é devido apenas quando há o resgate.
Enquanto não há o resgate, não há o IRPJ.
Mas, em 2017, a Receita Federal do Brasil (RFB) modificou essa regra. Ela estipulou que a incidência do come-cotas deve ser entendida como um resgate fictício do investimento no fundo. A partir de então, os rendimentos passaram a ser tributados não apenas pelo IRRF, mas também pelo IRPJ. Não apenas isso, eles passaram a ser tributados também pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), cuja alíquota é de 9%. Ou seja, IRRF, IRPJ e CSLL passaram a incidir em maio e novembro sobre os rendimentos acumulados nos fundos mesmo antes de qualquer resgate.
Essa nova regra foi criada com a Instrução Normativa RFB nº 1720 de 2017 com essas palavras: “considera-se resgate, no caso de aplicações em fundos de investimento por pessoa jurídica tributada com base no lucro presumido ou arbitrado, a incidência semestral do imposto sobre a renda nos meses de maio e novembro de cada ano”. Essa norma não tem uma lei para lhe dar fundamento de validade e deve ser rechaçada do sistema tributário.
A Lei nº 10.892 de 2004, que instituiu o come-cotas, dispõe assim sobre o assunto: “a incidência do imposto de renda na fonte sobre os rendimentos [de aplicações em fundos de investimento], ocorrerá no último dia útil dos meses de maio e de novembro de cada ano, ou no resgate, se ocorrido em data anterior”. Como se vê, essa norma trata apenas pelo IRRF. Não importa o ângulo a partir do qual se examine essa regra, ela não trata da forma de determinação do IRPJ, nem da CSLL, e, por isso, não permite à RFB criar uma hipótese fictícia de resgate para determinação desses tributos.
Pagar IRPJ e CSLL antes de ter o dinheiro no bolso já é ruim o suficiente. Saber que a cobrança não tem base em lei agrava a percepção da injustiça. Mas quem sofrerá mais será o investidor que pagou IRPJ e CSLL quando o fundo estava em fase de ganhos, e resgatou o investimento quando ele estava numa fase de perdas. A RFB não permitirá que a perda posterior seja compensada com ganho anterior, e não irá devolver o dinheiro de quem já pagou o imposto.
A solução seria iniciar um litígio com a RFB.
Para não ter muitos custos, o contribuinte poderia defender-se sozinho, sem apoio de advogados ou contadores, o que é permitido na fase administrativa da discussão. Na primeira instância administrativa, seu processo será julgado pela própria RFB, mas ela jamais julgaria contrariamente a suas próprias normas. Na segunda instância, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), seu processo será julgado por um colegiado composto à metade por representantes da RFB, e na outra metade por representantes dos contribuintes. Com um equilíbrio de forças no julgamento, ele poderá ter maiores chances de sucesso.
Até 2022, um eventual empate de votos no CARF favoreceria automaticamente os contribuintes. No entanto, em janeiro de 2023, o Presidente editou a Medida Provisória (MP) nº 1160 para permitir a RFB resolver os empates. Pior ainda, a MP impediu o recurso ao CARF de causas de valor inferior a R$ 1.320.000,00 (mil salários-mínimos).
Se o contribuinte for impedido de recorrer ao CARF por conta do valor da causa, ou não tiver sucesso ali, poderá recorrer ao Judiciário.
Para litigar em Juízo, deverá depositar o valor do tributo contestado. O total irá compreender o principal, multa de 75% e juros Selic. Sobre tudo isso haverá um acréscimo de 20%, cobrado pelos advogados que defendem a União. Nesse passo, o valor depósito tenderá a 200% do principal.
Enquanto o litígio se desenvolve, a União poderá desde já acessar o dinheiro depositado. A cada vez que ela precisar se manifestar, ela terá direito ao dobro do prazo do contribuinte. Se eventualmente o contribuinte não tiver sucesso na demanda, terá que pagar honorários de sucumbência, que tipicamente são arbitrados em 10% do valor da causa. Se a União perder, o depósito volta para o contribuinte e ela terá que pagar os honorários de sucumbência. Mas suas perdas serão mitigadas, pois os rendimentos do depósito deverão ser tributados, e os honorários de sucumbência não serão pagos imediatamente, mas seguindo-se a fila dos precatórios.
A assimetria na força da União frente aos contribuintes é tão enorme que o litígio tende a não valer a pena. Nesse ambiente, podemos afirmar que o próximo dia 31 de maio foi um dia triste para a Justiça tributária. Poucos irão saber, e ninguém vai reclamar.
*Vítor Flores é advogado tributarista. Formou-se em Direito pela UFBA e em Contabilidade pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Direito Tributário. Tem experiência profissional e acadêmica na Holanda, onde obteve LL.M. em Tributação Internacional pela Universidade de Leiden. Seu conhecimento em IFRS é certificado pelo ICAEW (Reino Unido).