Dentre os vários benefícios que a Internet nos brindou nas últimas décadas, não há dúvida de que a relativização de tudo se tornou uma realidade. Vivemos numa era em que inexistem absolutos, em que tudo está sujeito a questionamento e que, de fato, inexiste detentores da verdade absoluta. Se, no passado, a religião pretendia oferecer esse tipo de marco fixo, a abundância de informação e a realidade histórica de algumas denominações têm levado ao ceticismo. Desde o Renascimento, ao colocar-se o ser humano no centro do universo, passamos a questionar a manipulação de certos grupos religiosos e políticos e, a partir daí, observamos um enorme avanço no desenvolvimento, particularmente no continente europeu, que vivia o período obscuro da Idade Média.
Neste século XXI, verdades que outrora pareciam escritas em pedra voltaram a ser questionadas. Até mesmo o fato de a Terra ser redonda. Embora críticos diante destas dúvidas – que poderiam até ter alguma legitimidade – a verdade é que, diariamente, nos damos conta de que inexistem absolutos e, portanto, não se deve buscar coerência nas ações humanas. E talvez seja esta incoerência que nos aterrorize quanto ao futuro.
Não há dúvidas de que ver Bashar al-Assad, da Síria, participando da última reunião da Liga Árabe, em Jeddah, na Arábia Saudita, foi uma surpresa global. Na última década, a tirania de Assad foi responsável por milhares de mortes e a migração de milhões de sírios pelo mundo. O argumento da Liga Árabe é de que as sanções não funcionaram e o melhor seria engajar o país novamente no sistema árabe, ao menos. Para aqueles que entendiam a punição a Assad e a continuidade das sanções como forma de retirá-lo do poder, as medidas não surtiram o efeito desejado. De fato, as sanções somente pioraram substancialmente a vida do povo sírio, mas fortaleceram Assad politicamente.
Se sanções funcionassem, a Família Castro não estaria no controle de Cuba nas últimas seis décadas, tampouco Nicolas Maduro estaria no poder na Venezuela, e nem Vladimir Putin na liderança da Rússia. Afinal, sempre se encontram maneiras de contornar as sanções. Estas “lideranças” entendem que, num período em que não há absolutos – nem instituições com autoridade suficiente – afinal, não há alecrins dourados da superioridade moral para condenar veementemente essas situações – o tempo se transforma no elemento fundamental de reconstrução de imagem. Basta esperar porque, de alguma forma, as circunstâncias locais e globais transformarão a situação. Com isto, até a questão da corrupção perdeu relevância.
Quem poderia imaginar Joe Biden, líder do mundo livre, repensando as sanções contra Maduro em razão da necessidade do petróleo? Ou as Nações Unidas negociando com Putin para a liberação dos grãos produzidos na Ucrânia? Ou, ainda, Assad sendo recebido com tapete vermelho na Liga Árabe? Ou indivíduos com ficha corrida sendo eleitos? O fato é que na visão caleidoscópica do mundo, não existe mais branco ou preto. Tudo é cinza: 50 tons de cinza, para utilizarmos a linguagem hollywoodiana.
Viver num mundo em que tudo é relativo é complicado. Talvez, por causa dessa instabilidade, muitos poderão optar, ocasionalmente, por instituições em que se lhes apresentem verdades absolutas e recrudescerão em suas opiniões. No entanto, a decepção, certamente, ocorrerá com o tempo. Afinal, esta é a nova realidade absoluta: não espere coerência!
*Marcus Vinicius de Freitas é professor Visitante da China Foreign Affairs University