
Durante minha infância, assistia muito “De Volta para o Futuro”. Um clássico. Só que era uma trilogia: no terceiro filme os menos atentos já não sabiam mais qual personagem estava onde, e nem fazendo o quê.
Pois o saneamento básico está nessa linha. Era um setor que não funcionava. Aí, veio o marco de 2007. Muito se discutiu, e choveram boas intenções. Porém, em busca do consenso, não se atacou o verdadeiro problema, que era a ausência de competição, que levava à perpetuidade do incumbente estatal.
Eis que, em 2020, após muito debate e muita negociação, foi aprovado o Novo Marco do Saneamento, que obrigava algo que, na teoria, já deveria ser obrigatório desde a constituição de 1988: que o serviço público fosse licitado. Nessa licitação, poderiam participar empresas públicas ou privadas: ganhava a melhor oferta. Além disso, metas foram estabelecidas: universalização de 99% dos brasileiros com água, e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033. Vale dizer que isso já representava 3 anos de atraso às metas da agenda 2030, mas era o possível.
De lá pra cá, foram licitados estados tão diferentes quanto Amapá e Rio Grande do Sul, passando por Alagoas e Rio de Janeiro. Em comum, o sucesso dos leilões. O setor privado se mobilizou: afinal, quem consegue imaginar uma agenda mais ESG do que saneamento, que envolve social, ambiental e econômico numa escala nunca vista no Brasil? Para ficar em um só exemplo, o Amapá tinha metade da população sem água e mais de 80% sem tratamento de esgoto – uma realidade que, agora, está sendo transformada.
Eis que, esta semana, no melhor estilo “voltamos no tempo, Doutor?”, aparentemente o Novo Marco virou o Velho Marco, e o Novíssimo Marco se parece demais com o Velhíssimo Marco.
As principais mudanças foram: (i) os contratos sem licitação voltaram a ser permitidos, em um modelo mais radical do que antes: no limite, o município nem precisa aceitar assinar o contrato; (ii) o arranjo preferido com o setor privado passa a ser a Parceria Público-Privada “administrativa”, que antes estava limitada a 25% do contrato. Aqui há dois problemas: primeiro, aumenta o risco político do investidor (já que, ao contrário de uma concessão comum, onde o privado pode realizar a cobrança diretamente dos usuários, nesse arranjo o privado recebe da estatal); e, segundo, que, agora, sendo possível chegar à totalidade da operação subcontratada, há apenas duas consequências possíveis: ou o consumidor vai pagar o dobro pelo serviço (o custo da estatal e mais o custo do privado); ou a empresa pública, caso não repasse os custos dobrados, vai à falência; e (iii) a comprovação econômico-financeira que antes era necessária para que a estatal pudesse permanecer com seus contratos (era o que garantia que o investimento seria feito) foi afrouxada – e, agora, pode ser apenas uma peça de ficção, com contratos prorrogados por décadas.
A razão das mudanças é que, aparentemente, criou-se uma narrativa de que o Novo-Velho marco seria uma batalha entre empresas privadas e públicas. Não é verdade. A questão central sempre foi privilegiar as empresas eficientes e retirar do jogo as ineficientes – tanto que a regra que cancela o contrato de quem não cumprir as metas de universalização vale para todos. Ou seja: ganha o contrato quem oferece a melhor proposta; perde o contrato quem não entrega o que foi combinado. Deveria ser tão simples quanto isso – mas não é mais.
Nessa viagem do tempo, vamos torcer para que, muito em breve, estejamos de volta a um futuro no qual as praias estão limpas e nossos rios urbanos translúcidos. Espero que não demore.
*Diogo Mac Cord é sócio-líder de infraestrutura e mercados regulados da EY. Engenheiro, mestre em administração pública pela Universidade de Harvard e doutor em engenharia pela USP