
Na última sexta-feira, 31 de março, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, apresentou ao presidente Vladimir Putin uma doutrina de política externa atualizada.
Segundo declarado por Putin, as mudanças no cenário internacional exigiram a revisão dos principais documentos de planejamento estratégico. Entre eles está o Conceito de Política Externa da Federação Russa, que delineia os princípios, tarefas e prioridades da atividade diplomática. O conceito de política externa da Federação Russa foi aprovado pela primeira vez em 1993 e a principal tarefa era “estabelecer relações positivas estáveis com os países vizinhos para superar os processos de desintegração desestabilizadores no território da ex-URSS”.
Seguindo a sequência histórica, Vladimir Putin aprovou o novo conceito em 28 de junho de 2000. Na época, o foco era “fortalecer a união da Rússia e da Bielo-Rússia”. Já em 2008, o conceito foi aprovado pelo presidente Dmitry Medvedev e este documento falava da “perspectiva de o Ocidente perder o monopólio dos processos de globalização”, e a Rússia era chamada de “a maior potência eurasiana”. O conceito de 2013 também continha a ideia de “reduzir a capacidade do Ocidente de dominar a economia e a política mundiais”. A versão de 2016 indicava 11 tarefas da política externa russa, sendo a principal delas a proteção da soberania e integridade territorial do país. Também foram mencionadas a “preservação e fortalecimento de posições fortes na comunidade mundial”, a “formação de relações de boa vizinhança com os estados vizinhos”, a “assistência na eliminação de focos de conflitos existentes em seu território” e a popularização da cultura nacional.
Em janeiro de 2022, o Presidente Vladimir Putin deu instruções para atualizar o documento, considerando as novas realidades do cenário internacional. Seguindo a orientação, em 15 de fevereiro de 2023, falando na Duma, Sergey Lavrov declarou: “Em nosso conceito atualizado de política externa, falaremos sobre a necessidade de acabar com o monopólio do Ocidente na formação da estrutura da vida internacional, que, doravante, deve ser determinado não em seus interesses egoístas, mas em uma base universal justa do equilíbrio de interesses, conforme exigido pela Carta da ONU, que consagra o princípio da igualdade soberana de todos os Estados”.
Lavrov descreve o atual documento aprovado como um manual para os diplomatas russos, que reflete as mudanças nas realidades geopolíticas, declarando o nível sem precedentes de tensão internacional na última década. “É reconhecida a natureza existencial das ameaças à segurança e ao desenvolvimento de nosso país, criadas pela ação de Estados hostis. O principal iniciador e condutor da linha anti-russa é diretamente chamado de Estados Unidos da América e, em geral, a política do Ocidente, voltada para o enfraquecimento geral da Rússia, é caracterizada como uma guerra híbrida de um novo tipo”, disse Lavrov.
As disposições do Conceito assumem que as medidas anti-russas de estados hostis serão consistentemente e, se necessário, severamente reprimidas. Lavrov complementa reforçando que “não estamos nos isolando dos países anglo-saxões e da Europa continental, não temos intenções inicialmente hostis em relação a eles. No entanto, eles devem estar cientes de que a cooperação pragmática com a Rússia só é possível se eles perceberem a futilidade de uma política de confronto e se essa política for abandonada em ações práticas”.
O ministro interpreta que a economia mundial está passando por uma grande reestruturação e caminhando para uma nova base tecnológica, ocorrendo uma redistribuição do potencial de desenvolvimento em favor de novos centros de crescimento que leva à formação de uma ordem mundial multipolar e não mais apenas concentrada nos EUA, sendo esta uma tendência-chave nas relações internacionais no estágio atual.
É colocada ênfase na necessidade de assegurar o estado de direito nas relações internacionais e proclamado que o desenvolvimento progressivo do direito internacional deve levar em conta as realidades do mundo de hoje. Reforçou Lavrov: “Perante as ameaças externas agudas, confirma-se a nossa disponibilidade para observar o princípio da indivisibilidade da segurança, mas apenas em relação aos Estados e às suas associações que demonstrem reciprocidade nesta matéria”.
Os acordos sobre o princípio de indivisibilidade da segurança realizados pelos Estados-membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em Istambul, Turquia, em 1999, e Astana, Cazaquistão, em 2010, previram não só a liberdade de associação a alianças, mas, também, a necessidade de evitar garantir a segurança à custa da segurança dos outros.
O documento apresenta entre as prioridades: combater a russofobia, fortalecer a posição da língua russa no mundo, lutar pela verdade histórica, proteger a cultura, despolitizar o esporte e estabelecer novas formas de cooperação desportiva.
A estratégia russa de despolitizar o esporte e estabelecer novas formas de cooperação desportiva já começam a dar frutos. Na última quarta-feira, o Comitê Olímpico Internacional (COI) publicou um conjunto de recomendações às federações esportivas internacionais para permitir o retorno de atletas russos e bielorrussos desde a proibição ocorrida no ano passado, após a invasão de Moscou à Ucrânia. Isso ainda não inclui as Olimpíadas de 2024, em Paris, no entanto, uma decisão separada sobre a competição será tomada em uma data posterior.
Na seção regional do Conceito, há ênfase nos interesses estratégicos da Rússia no contexto do aprofundamento da integração eurasiana, baseada na União Estatal da Rússia e Bielorrússia, na União Econômica Eurasiática, na Organização do Tratado de Segurança Coletiva, na formação de uma grande parceria eurasiana e no fortalecimento da Organização de Cooperação de Xangai e do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
O documento também coloca ênfase na parceria multifacetada e mutuamente benéfica com a República Federativa do Brasil, a República de Cuba, a República da Nicarágua e com a República Bolivariana da Venezuela, desenvolvendo relações com outros Estados latino-americanos.
Com Doutrina atualizada, a Federação Russa assumiu este mês a Presidência do Conselho de Segurança da ONU. Cada um dos 15 membros do Conselho assume a função por um mês, em sistema de rodízio.
O papel nesta presidência é principalmente processual, mas o embaixador de Moscou na ONU, Vasily Nebenzya, disse à agência de notícias russa Tass que planeja supervisionar vários debates, incluindo um sobre controle de armas. Ele declarou que discutiria uma “nova ordem mundial” que, segundo ele, viria “substituir a unipolar”, mas não apresentou detalhes sobre aspectos práticos.
É evidente que a Rússia não busca fortalecer valores como democracia e direitos humanos, pois seus valores são medidos a partir da própria sobrevivência no poder e sua expansão. Aqueles que são excluídos da comunidade internacional por violações à liberdade e direitos humanos estarão mais próximos de se aliar à Rússia e seus parceiros, evidenciando um cenário internacional preocupante com regimes centralizados e concentradores de poder sendo fortalecidos.
Um relatório da Economist Intelligence Unit (EIU), publicado no início de março de 2023, avaliou que o apoio à Rússia cresceu desde o início da guerra com a Ucrânia, à medida que Moscou aumenta seu relacionamento com países anteriormente neutros ou geopoliticamente desalinhados.
Avaliando a aplicação de sanções pelos países, padrões de votação na ONU, tendências políticas e declarações oficiais juntamente com laços econômicos, políticos, militares e históricos, a EIU determinou que no ano passado houve um aumento de países alinhados à Federação Russa de 25 para 36, agora representando quase 31% da população mundial. “Alguns países anteriormente alinhados com o Ocidente, incluindo Colômbia, Turquia e Catar, passaram para esta categoria, pois seus governos buscam colher benefícios econômicos do envolvimento com ambos os lados”, declarou a EIU.
A EIU reforça ainda que “a propaganda russa nos países em desenvolvimento está funcionando extremamente bem, alimentando o ressentimento contra as ex-potências coloniais (…) nutrindo a ideia de que as sanções dos países ocidentais estão alimentando a insegurança alimentar global, a insegurança energética global, especialmente nos países emergentes”.
Por outro lado, o número de países que condenam ativamente a Rússia caiu de 131 para 122. O bloco liderado pelos EUA e pela União Europeia, incluindo países “de tendência ocidental”, representa cerca de 36% da população global e exibiu um “forte nível de colaboração em sanções” junto com apoio militar e econômico consistente para a Ucrânia, disse o relatório.
A diretora do EIU, Agathe Demarais, afirmou que há uma “hipocrisia” percebida no Sul Global sobre as condenações ocidentais para a Rússia, dada a história da intervenção militar ocidental – um sentimento que a Rússia procurou fomentar para desviar a atenção de suas ações na Ucrânia. “Acho que há uma falta de conhecimento sobre as sanções e como elas funcionam, o que fazem etc., e a Rússia obviamente está usando isso a seu favor. Vai ser uma tendência de longo prazo, não tenho certeza se há alguma solução mágica rápida”, reforçou Demarais.
Ressalte-se que a Rússia e a China têm cada vez mais se apresentado aos países em desenvolvimento como alternativas ao Ocidente como parceiros econômicos e militares, pois nenhum deles anexará demandas em torno da democracia ou dos direitos humanos às suas relações diplomáticas.