
Embora alguns dias já tenham passado da morte e do enterro de Mikhail Gorbachev, o primeiro e último presidente da União Soviética – e num mundo em que sempre se buscam novas notícias – a morte do ex-líder soviético merece um momento de reflexão por aquilo que ele representou. O mundo que, à época de Gorbachev, vivia a iminência de um conflito nuclear, respirou aliviado ao ver uma liderança jovem como ele, diferentemente da gerontocracia que governara a União Soviética por anos, com novas perspectivas para reforma do país e atualização do sistema político que já não entregava os resultados necessários à efetiva melhora da qualidade de vida de seus cidadãos.
A morte de Gorbachev nos faz refletir sobre a perspectiva caleidoscópica que um político pode gerar e representar. Gorbachev – pode-se dizer – tem quatro matizes pelos quais ele pode ser interpretado. De idealista a reformista, de traidor à agente da CIA, a figura de Gorbachev é complexa por aquilo que ele pretendia realizar e o que realizou. Gorbachev pretendia uma evolução e não revolução, através de reformas do regime político e econômico para perpetuar a sua continuidade. No entanto, o regime que liderava já não era mais sustentável. Tivesse a União Soviética reformado seu sistema político e econômico na década de 1970, como Deng Xiaoping o fez na China com o processo de Reforma e Abertura, talvez Gorbachev não fosse o responsável pela dissolução do império soviético, que, segundo Vladimir Putin, foi a maior tragédia do século XX.
O colapso soviético era previsível. A União Soviética enfrentava problemas estruturais profundos, corrupção e distensões sociais de enorme força entre os tecidos étnicos do país, além de uma incapacidade atroz de competição com o Ocidente resultante de uma economia mal planejada, cujos resultados eram claramente observados por qualquer soviético que visitasse o Ocidente. A União Soviética, poderosa em armamentos, era atrasadíssima quando comparada à superioridade e produtividade encontrada nos mercados desenvolvidos do Ocidente. O gasto para manter o maquinário militar era incompatível com a produtividade do país. Foi esta vulnerabilidade que Ronald Reagan soube identificar quando defendeu o programa Guerra nas Estrelas – jamais implementado – que incitou uma nova concorrência armamentista e, eventualmente, levou a União Soviética à bancarrota.
Por este motivo que as reformas de Gorbachev – Perestroika (reestruturação) e Glasnost (abertura) – cujos objetivos eram construir resiliência no sistema político vigente, quando ocorreram, já não eram mais capazes de alterar o rumo ao colapso. Gorbachev tentou mesclar os sistemas, porém sem permitir que o novo, efetivamente, decolasse. A perestroika foi, em grande parte, a principal responsável pelo surgimento das oligarquias que dominam a Rússia e que até hoje impedem o país de atingir seu pleno potencial. O colapso soviético levou a uma rápida deterioração das suas repúblicas, que empobreceram substancialmente e demoraram anos para recuperar-se em razão da produção planejada e cuja dissolução atabalhoada causou enorme sofrimento aos países. Os países pós-dissolução atravessaram um período complexo de inflação elevada, aumento na criminalidade e a desvalorização da moeda.
Essa total desestruturação é indicada como um dos fatores que, também, contribuíram à ascensão de Putin ao poder. Existe, é fato, nas antigas repúblicas soviéticas, particularmente entre os mais idosos, uma certa nostalgia do período soviético. Para eles, embora a vida pudesse ser miserável de muitas formas, a população ainda podia contar com a próxima refeição, ruas seguras e cidades limpas, além do orgulho e nacionalismo relacionados à proeminência internacional. As benesses prometidas pelo capitalismo jamais se transformaram em efetiva realidade e bem-estar social, no entanto.
A desestruturação é, sem dúvida, um dos motivos principais que torna difícil avaliar o legado de Gorbachev porque muito dos objetivos que pretendia alcançar não se tornaram realidade. E muito do legado atribuído a Gorbachev deriva das consequências não intencionais de suas ações. É por este motivo que o legado de Gorbachev segue controverso na Rússia e nas antigas repúblicas soviéticas.
Para o Ocidente, no entanto, Gorbachev será sempre o responsável pelo fim da insegurança representada pela Guerra Fria. O processo de distensão e ruptura dos Balcãs, da Alemanha e de outras áreas sob influência soviética, transcorreram num cenário de paz, que, eventualmente, alteraram profundamente o desenho do século XXI. Passadas três décadas do colapso da União Soviética, Gorbachev será sempre recordado como estadista e o pacifista, que esteve à frente de um dos maiores processos de transferência de poder e de transição global. Gorbachev implodiu a União Soviética e acabou com a Guerra Fria.
O grande líder soviético, embora recordado por alguns com escárnio, entra para o panteão da história como um líder cuja sobriedade e visão alteraram, para sempre, o curso da história. Apesar de os russos não lhe darem o devido valor, Gorbachev não cultivou ressentimentos. Ele mesmo afirmou: “Ressentimento é a última coisa que um político deve sentir.” O mundo precisa voltar a produzir líderes do calibre de Gorbachev.
*Marcus Vinícius De Freitas, professor visitante, China Foreign Affairs University. Senior Fellow, Policy Center for the New South