Enquanto o presidente Jair Bolsonaro busca ampliar agressivamente o direito a posse de armas no Brasil, documentos obtidos pela Reuters revelam uma importante fonte de resistência à sua agenda: a própria Polícia Federal.
Quase duas décadas depois de o Brasil aprovar uma lei histórica de controle de armas de fogo, Bolsonaro usou dezenas de decretos para enfraquecer essas restrições, transformando o direito de portar armas em um símbolo de seu movimento de ultradireita. Um amplo projeto de liberalização em discussão no Senado pode consagrar em lei seu esforço para tornar o Brasil um país armado como os Estados Unidos.
No entanto, documentos inéditos até agora mostram que a Polícia Federal há muito se opõe à visão do presidente, emitindo advertências severas sobre dois projetos de lei apoiados por Bolsonaro para enfraquecer o controle de armas, incluindo o que agora aguarda votação no Senado.
Em pelo menos oito posições institucionais formais, entregues ao Congresso de 2018 até o início deste ano, os policiais federais disseram que as propostas tornariam mais difícil garantir a segurança no país com mais homicídios em números absolutos do mundo.
“Consideramos todas essas mudanças um retrocesso na política pública de controle de armas de fogo prevista na legislação atual”, escreveu a PF em dezembro de 2019 aos parlamentares depois que o Projeto de Lei 3723, o mais recente de autoria do Executivo para afrouxar o controle de armas, passou na Câmara dos Deputados.
Se aprovado pelos senadores, escreveu a polícia, o projeto “resultará, sem dúvida, no retorno da situação caótica no país de excessiva oferta de armas de fogo, inclusive ilegais, em circulação, podendo tornar muito piores os índices de criminalidade”.
Ainda assim, a PF acabou dando apoio qualificado –com “ressalvas” bem expressas– à medida apoiada pelo presidente. De acordo com uma autoridade sênior com conhecimento dos documentos, esse endosso condicional é um sinal da influência de Bolsonaro sobre uma força que, segundo críticos, ele povoa com aliados em postos-chave ao mesmo tempo em que deixa de lado vozes dissidentes.
“A questão é que há uma corrente e se você não segue a corrente, você não faz parte do governo”, disse a fonte.
Nem o Palácio do Planalto nem a Polícia Federal responderam a pedidos de comentário.
Graças às políticas de Bolsonaro, o número de brasileiros que se registram para possuir armas aumentou seis vezes desde 2018, para quase 700.000, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho.
Em discursos inflamados rumo à sua batalha pela reeleição em outubro, Bolsonaro tem pedido a seus apoiadores que se armem ou correrão o risco de serem “escravizados”. Leis duras sobre armas precisam ser derrubadas, diz ele, pois só ajudam os criminosos.
Mas a Polícia Federal argumentou em seus briefings que mais armas beneficiariam os criminosos.
Partes do PL 3723 parecem ter sido redigidos “sem prever as consequências dessas descriminalizações para a delinquência geral e o crime organizado”, escreveram.
A posição da Polícia Federal é marcante no Brasil, onde muitos policiais simpatizam com Bolsonaro.
No entanto, os briefings ao Congresso, obtidos por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), mostram ampla antipatia em relação à agenda de armas de Bolsonaro. Cinco oficiais de alto escalão expressaram profundas preocupações à Reuters sobre o legado da política de armas do atual governo, mas disseram que as pressões políticas internas os impediam de se manifestar.
“A questão é que não pode se expressar livremente”, afirmou a fonte com conhecimento dos documentos. “Mas a Polícia Federal tem muito ciosa essa questão de controle de armas, que foi boa para o Brasil, é boa para o Brasil.”
COMBATE AO DESARMAMENTO
Como deputado federal em 2014, Bolsonaro propôs um projeto de lei dando mais liberdade para posse de armas a policiais, espiões, políticos, autoridades, colecionadores de armas, proprietários rurais e até jornalistas que cobrem crimes.
O projeto de lei de Bolsonaro foi colocado em outro, o PL 3722, que facilitaria a compra, o transporte e a coleção de armas de fogo.
A polícia disse aos parlamentares em 2018 que havia “diversas razões de ordem prática” para não aprovar o projeto, que buscava “reproduzir sistemática já reconhecida ineficaz”.
Acrescentou que haveria “o manifesto retrocesso institucional caso haja o acolhimento da proposta legislativa aqui examinada”.
O projeto de lei ainda não foi aprovado. Diante da persistente resistência do Congresso, Bolsonaro assinou pelo menos 41 decretos para reverter restrições à posse de armas desde 2019, segundo o Instituto Sou da Paz.
Sua tática mais efetiva tem sido facilitar o registro de brasileiros como “caçadores, atiradores e colecionadores”, conhecidos como “CACs”. Sob os regulamentos atuais, um atirador pode possuir até 60 armas, enquanto um colecionador pode ter um arsenal ilimitado. Nos primeiros cinco meses de 2022, uma média de 1.043 brasileiros se registraram para licenças CACs a cada dia.
Bolsonaro, que espera atingir 1 milhão de CACs este ano, diz que o aumento das armas tem ajudado a reduzir a taxa de homicídios, que tem caído seguidamente desde antes de ele chegar ao poder, de 27 por 100 mil em 2017 para 19 por 100 mil no ano passado.
Especialistas contestam a teoria do presidente, advertindo que a queda de curto prazo na curva de homicídios é muitas vezes reflexo de alianças entre facções criminosas, enquanto há uma forte correlação de longo prazo entre mortes provocadas por armas de fogo e o número de artefatos em circulação.
Bolsonaro tem levantado o temor de que seus decretos sejam revogados se ele não for reeleito. Seu rival, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aprovou a lei de desarmamento de 2003 e disse que vai “desarmar” o Brasil se vencer.
Por isso, Bolsonaro também apoia o PL 3723, que incorporaria os direitos de CAC na lei, permitindo que eles carregassem armas “prontas para uso”.
A Polícia Federal também contestou o PL 3723.
No final de 2019, eles alertaram que a frágil situação de segurança do Brasil exigia medidas rígidas de controle de armas, propuseram a criação de um novo órgão civil de controle de armas e argumentaram que aqueles que buscavam licenças de CAC deveriam provar que são caçadores ou atiradores.
Caso contrário, os policiais federais escreveram, o “cidadão comum será encorajado a recorrer ao Exército e a se cadastrar como CAC, visando com isso driblar a legislação atual que dispõe sobre o controle de armas para civis. Terá, assim, acesso facilitado a porte e posse de armas de fogo, munições e acessórios, de forma desburocratizada e desregulamentada”.
Apesar dessas questões, a avaliação formal da Polícia Federal até março era de que o PL 3723 “deveria prosperar, com ajustes”.
A fonte policial disse que isso reflete a realidade política sob Bolsonaro. Ao sinalizar problemas, ao mesmo tempo em que apoia tecnicamente a medida, os policiais esperavam que os parlamentares pudessem diluí-la ou rejeitá-la.
“Se aprovada, a gente tem certeza de que ia ser uma porcaria para o Brasil”, disse a fonte, resumindo a mensagem aos senadores como: “Se mudar tudo, pode aprovar”.
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